Tuesday, July 15, 2008

Hegel – Prefácio da Fenomenologia do Espírito

O absoluto é sujeito



Hegel propõe, em concordância com o seu sistema, que tomemos um ponto de vista em que a apreensão e a expressão do verdadeiro sejam feitas tomando este, não como mera substância, mas também, e fundamentalmente, como sujeito.
O absoluto verdadeiro, na História, no desenvolvimento da razão, não é apenas paciente, como é agente, e tem identidade, que se revela com ele.
O verdadeiro é substância, e não só. É substância pois contém em si o «universal ou a imediatez do saber» e o que é ser ou imediatez para o saber, ou seja, o verdadeiro é resultado e processo, da sua própria actividade.
O verdadeiro não é só substância no sentido do latim substantia (verbo substare), que significa estar debaixo de...). O verdadeiro é também subjectum, sujeito na medida em que sustenta os acidentes.
Há aqui um jogo de palavras em que Hegel joga com a etimologia de substância e de sujeito, reconduzindo ambos a uma esfera anterior, fundante, mas concedendo ao sujeito a parte motora, activa, ou seja, o que Hegel nos diz é que não devemos encarar a substância como coisa passiva sem qualquer carácter activo e dinâmico, mas ver que a sua própria manifestação ou aparição é actividade própria de um sujeito que se manifesta, que age, que apreende e exprime, que é exprimido e apreendido.
Hegel aponta as três posições contemporâneas fundantes relativamente à noção de substância:
a de Espinosa, que por ser desprovida de um princípio de personalidade não pode ser assumida como sujeito, adoptando um papel claramente passivo, e consequentemente não pode ser espírito devido à sua rigidez e imutabilidade, o que não passa de uma cristalização...
as de Kant e Fichte, que ao tomarem a substância como o «pensar do pensar», cristalizam também a substância e a filosofia ao reduzirem-nas a um formalismo lógico e vazio;
E por fim, Schelling, que concebe a substância como unidade do pensar e do ser, que eclode independentemente da posição do sujeito e do objecto, e essa identidade, como cópula, está num campo diferente, misturam-se as esferas de sujeito e objecto. Mas mesmo esta posição de Schelling é uma posição absoluta, e talvez seja, nas palavras de Hegel, «simplicidade inerte».
A verdadeira substância é um ser que é verdadeiramente sujeito, isto é, que é apenas ele mesmo na medida em que se aliena ele mesmo de si mesmo, e pode depois posicionar-se ele mesmo em e através daquilo que alienou ou é estranho.
Deste modo é substância viva, porque é um ser que é na verdade, sujeito efectivo e sujeito, e efectivo, e porque «somente na medida em que ela é o movimento do pôr-se a si mesma ou a mediação do tornar-se outra consigo mesma.»
Enquanto sujeito, a substância viva é pura, é simples negatividade, e isto significa uma cisão do simples, uma duplicação oponente, e a negação desta diversidade indiferente e do seu oposto.
O verdadeiro é esta igualdade que se restaura, é a reflexão em si mesma no ser-outro, não é uma unidade originária como tal, ou uma unidade imediata como tal.


«O verdadeiro é o devir de si mesmo, o círculo que pressupõe e tem como começo o seu fim como sua finalidade, e que só é efectivo mediante o desenvolvimento e o seu fim.»
A substância torna-se outra consigo mesma, porque é sujeito. Ao ser sujeito, posiciona-se, e ao posicionar-se está a mediar-se a si mesma, sai «fora de si», para decidir a sua posição. Media-se a si mesma.
Para se posicionar, tem de ter um referente, uma fronteira, a partir da qual se posicione. Essa fronteira, o objecto, sendo referente, faz com que a substância viva seja simples negatividade porque se posiciona em relação a esse objecto.
A substância viva é ao mesmo tempo, posição e posicionamento, ou seja, positividade e negatividade, em que existe um devir entre o em si e o para si da substância. Neste fluxo e refluxo, o verdadeiro é o processo, não um processo vazio de tipo eterno-retorno, mas de superação, mantendo sempre o que é superado.
Não um formalismo vazio de pescadinha com rabo na boca, mas um contínuo movimento de ascenção, sendo que esta ascenção é um movimento para a plenitude, uma vez que nada deita fora no decurso de todo o processo.
Este devir é que é o verdadeiro,«o verdadeiro é o devir de si mesmo».
Neste círculo de círculos que só pode ser uma espiral ascendente, é que o «o círculo que pressupõe e tem como começo o seu fim como sua finalidade, e que só é efectivo mediante o desenvolvimento e o seu fim.»
Este devir não é um mero ciclo. Não pode ser encarado como tal, se nesse acto, esquecemos a tensão que se traduz em seriedade, dor, angústia, paciência e trabalho do negativo.
Só há evolução ou devir, com a transição, com a necessidade de transição entre estados. Com o movimento para o outro, pela necessidade de mudança. Encarar este devir como um mero círculo vicioso é esquecer a luta constante, a necessidade permanente e imanente da superação.
O próprio amor é o movimento para. É origem de movimento. Sem ele, a substância não seria sujeito, seria uma «igualdade imperturbada e unidade consigo mesma», desligada de si mesma, ou seja, alienada, por não ser outro para si. Ou seja, passando a expressão, puro cristal. Cristalizado. Como pode algo estar alienado, sem movimento? A alienação só é superada com o ser-outro, o tomar-se a si mesmo como «objecto» de pensamento.
Sem movimento, sem pensamento de si, a substância (que na realidade é sujeito) está na mais profunda alienação, pois não tem o seu ser em si, nem tem sequer, ser.
Este em si, é uma abstracção, e estamos com ele a considerar algo sem atender ao seu devir.
«Este em si, porém, é a universalidade abstracta na qual se prescinde da sua natureza de ser para si, e portanto em geral, do automovimento da forma.»
A essência da substância não é este movimento do em si / para si. Este vaivém é uma forma. A essência carece do «automovimento da forma», que é elemento diferenciador.
A forma não se esgota na essência, porque a essência é a identidade pensada em abstracto, ou seja, o em si sem o seu processo gravado na história, sem a superação com a manutenção do superado. Só a forma diferencia e determina, pois contém o elemento agónico, isto é, a tensão, e o processo de superação contendo o superado.
«Justamente porque a forma é tão essencial à essência como esta o é a si mesma, não deve apreendê-la nem exprimi-la meramente como essência, ou seja, como substância imediata ou como pura intuição de si do divino, mas também como forma e em toda a riqueza da forma desenvolvida; só deste modo se aprende e exprime como [o] real de facto.»
O verdadeiro absoluto só pode ser visto como o todo de um acto/processo de auto-realização.
«O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se cumpre através da sua evolução. Há que dizer do absoluto que ele é essencialmente resultado, que unicamente no fim é aquilo que na verdade é; e precisamente nisto consiste a sua natureza de ser efectivo, sujeito ou devir de si mesmo.»
Como já tínhamos visto anteriormente, o absoluto verdadeiro, na História, não é apenas paciente, como também é agente, e fundamentalmente, sujeito. «O verdadeiro é o devir de si mesmo, o círculo que pressupõe e tem como começo o seu fim como sua finalidade, e que só é efectivo mediante o desenvolvimento e o seu fim.»
Mas como é que o absoluto, que aparentemente é a soma de tudo, a totalidade, é essencialmente um resultado? Só em si é que podemos conotar a essência como a soma das partes, a totalidade. Entendido deste modo, o absoluto é abstracto, é positivo, porque é conseguido por uma soma contínua das coisas. Deste modo o absoluto é um formalismo vazio. Deste modo, o absoluto não exprime o que nele está contido.
«O começo, o princípio ou o absoluto, como ele se exprime inicial e imediatamente, é apenas o universal.»
O absoluto «(...) é mais do que uma semelhante palavra (...) é um tornar-se outro que tem de ser retomado, é uma mediação.»
O que nos choca, muito, é dizer do absoluto, que ele é uma mediação. Equivale isto a dizer que tudo é mudança? Como podemos nós pensar o absoluto como um absoluto devir? A mudança nunca é arbitrária. Porque a razão da mudança é a essência da própria mudança.
Hegel diz que este pensamento nos horroriza. «É esta, porém, aquilo que nos horroriza, como se, desse modo, ao fazer-se dela apenas, isto, que ela não é nada de absoluto nem no absoluto, se abandonasse o conhecimento absoluto.»
O que é então a mediação?
Hegel diz-nos que este horror que temos ao encarar o absoluto como mediação, procede de um desconhecimento da nossa parte acerca do que seja a mediação.
«(...) a mediação não é outra coisa senão a igualdade consigo mesma que se move, ou é a reflexão em si mesma, o momento do eu que é para si, a pura negatividade ou o simples devir.»

A apreensão das coisas no momento, o imediato é «a imediatez em devir e o imediato mesmo.»
Mas a cada posição de um objecto, um sujeito a ele se opõe, pelo que «é um desconhecimento da razão quando a reflexão é excluída do verdadeiro e não é apreendida como momento positivo (sujeito – afirma / objecto – nega) do absoluto.» É nesta afirmação/negação que se dá a mediação que suprime/supera esta oposição ao seu devir. O verdadeiro é o todo. O todo revela-se, manifesta-se, pois é também sujeito. Apreende-se a si mesmo através de algo outro que também é ele mesmo. Neste movimento de saída de si e de retorno a si, mas já enriquecido, podemos dizer que «Este devir é igualmente simples e, por isso, não difere da forma do verdadeiro [que consiste em] mostrar-se como simples no resultado; ele é antes, precisamente, este ser regressado à simplicidade.-»
Ao focar o homem como exemplo, temos a clara noção de que o carácter activo que se revela na práxis, na acção é elemento primordial em qualquer diferenciação, ao mesmo tempo que serve de testemunha a um processo maior de reconhecimento e criação. O homem faz-se a si mesmo, como substância é e se faz sujeito, o mesmo que realidade efectiva, revelando-se aqui a realidade como uma mediação auto-criadora, na qual agora podemos tomar como absoluto.
«Este resultado, porém, é ele próprio simples imediatez, pois é a liberdade consciente de si, que em si mesma repousa e que não pôs de lado a oposição e a abandona aí, mas se reconciliou com ela.»
A substância faz-se sujeito. Cria-se. Tal como o homem se cria a si mesmo.
Como? Pela razão, e a razão é o agir conforme a um fim».
Existe um fim nas coisas, e esse fim é racional. E porque o fim é intrínseco, é extrínseco ao mesmo tempo.
O fim é o móbil da coisa, é pura negatividade que faz mover em direcção a. Enquanto força de movimento, é abstracto, e é ser-para-si, incidindo sobre si mesmo, na altura em que se manifesta. (Se eu tenho vontade, mas não sei de quê, tenho vontade e consciência de a Ter.)
O fim é imediato e mediato, pois cada coisa é o seu próprio fim, sem deixar de Ter o movimento para fora de si e de retorno a si.
«O resultado só é o mesmo que o começo porque o começo é fim – ou o efectivo é o mesmo que o seu conceito somente porque o imediato como fim tem nele o si mesmo ou a pura realidade efectiva.»
Só um sujeito pode Ter um fim, só um sujeito tem vontade e movimento, pelo que ao ser sujeito, a substância é realidade efectiva, e quer o mediato que revela uma vontade, quer o imediato que revela um interesse, exprimem esta realidade efectiva que é a do sujeito. Este fim, este movimento, ao acontecer, revela-se, « O fim desenvolvido ou o efectivo que é –aí é o movimento e o devir desenrolado(...)»
Esta necessidade de movimento, esta «inquietação» nas palavras de Hegel, é o si mesmo, que está no início, antes da alteração, e já é resultado, pois é necessidade de outra coisa qualquer.
Esta passagem que a seguir citamos, é de uma beleza deslumbrante:
«O fim desenvolvido ou o efectivo que é-aí é o movimento e o devir desenrolado; esta inquietação, porém, é justamente o si mesmo; é igual àquela imediatez e simplicidade do começo porque é o resultado, o regressado em si mesmo;-mas o regressado em si mesmo é precisamente o si mesmo, e o si mesmo é a simplicidade e a igualdade que se refere a si.»
Falamos em Deus, em absoluto, etc., mas o que são esses sujeitos de que falamos?
São meros sujeitos formais, dos quais dizemos alguma coisa?
A actividade, o devir de si mesmo, que é o verdadeiro, «Em tais proposições (...) está só posto directamente como sujeito, mas não se apresenta como o movimento do reflectir-se em si mesmo.»
Sujeito, é aquilo de que se diz alguma coisa. Sem o predicado, permanece indeterminado, vazio, abstracto. A uma maior predicação corresponde uma maior concreção, ou seja, relativamente ao sujeito «(...) só o predicado diz o que ele é, é o seu preenchimento e a sua significação; o começo vazio torna-se um saber efectivo unicamente neste fim.»
O real é racional, e o racional é real, pois só através do tratamento da razão o real se torna efectivo, concreto, mais rico além das impressões do imediato. O que se denota então quando se diz «eterno», «ordem moral do mundo», «ser», «uno», etc.?
Denota-se, põe-se não um ser ou essência, ou um universal em geral, «mas um reflectido em si, sujeito.»
Digo «Deus», digo que é, mas não digo o que é, pois não o predico.
Ao dizer «Deus», contudo, posiciono-o e posiciono-me a mim. Confiro-lhe e a mim existência, a ele porque tem a unidade suficiente para lhe dar identidade (reflectido em si), a mim porque o afirmo.
Tomamos aqui o sujeito como um saco de plástico vazio que vamos enchendo de predicados.
Nós que o enchemos de predicados, sabemos de sua existência, e somos nós que o predicamos. Esta nossa acção de predicação faz parte do sujeito?
Sem esta nossa acção, o sujeito não estaria sujeito à nossa predicação, ou seja, não seria. Assim a essência de Deus seria inessencial, pois seria um acto nosso.
Este movimento não pode pertencer ao sujeito, sob pena deste Ter uma essência não em si, mas se encararmos o sujeito como ponto referente ao predicado, é esta a consequência necessária.
Ser sujeito, não é o predicado essencial do absoluto. Pois desta forma, o sujeito seria coisa passiva à espera dos predicados, quando ele próprio é auto-movimento.
Parece que as divisões habituais entre sujeito e objecto, não se conseguem aplicar-se à problemática abordada aqui.
Se ser sujeito não é a realidade efectiva do absoluto, qual é ?
A consequência da exposição anterior, é esta, «que o saber só como ciência ou como sistema é efectivo e pode ser apresentado(...)»
Um princípio é já um fim, por exemplo, se dizemos que o princípio será o cogito, esse princípio é já resultado de alguma coisa, não cai do céu.
«(...)uma assim designada proposição fundamental ou princípio da filosofia, se é verdadeiro, é já também falso, porque é proposição fundamental ou princípio.»
Todo o começo é arbitrário, mas começar com um princípio, é um principiar deficiente, porque esse princípio será sempre o universal, e princípio, só porque é começo.
Começar pelo começo só porque é começo, mostra que a refutação do começo é o seu desenvolvimento, e quanto maior o desenvolvimento, maior a refutação, pois o desenvolvimento seria a negatividade do começo, o outro do começo. O resultado enquanto dado, enquanto de certa forma cristalizado, será então positivo. Mas positivo em relação a quê? Ao início?
Mas no começo já está contido o fim, embora não realizado pelo que seria negativo em relação ao começo. Tal como a bolota tem em si o carvalho, mas ainda não o é. Em relação à bolota, o carvalho é o mesmo que é outro.
Assim, o começo e o resultado. Qualquer começo é refutado, enquanto fundamento.
Fundar é afundar, como afirma Hegel, na A Ciência da Lógica.
Deste modo a mais alta definição do absoluto que é sujeito, é o espírito. Só o espiritual é efectivo, só na nossa consciência, conhecimento do Espírito, é o Espírito para si. O nosso avançar no espírito, é o movimento de autoconstrução do Espírito, numa autoreflexão, entre dois elementos unos, nós e o Espírito.
E isto é a ciência...A autoconsciência do Espírito.
«O puro auto-reconhecer-se no ser-outro absoluto, este éter como tal, é o fundamento e o terreno da ciência ou o saber em geral.»
Segundo Hegel, o começo da filosofia tem de ser feito a partir deste ponto.
É necessário que a consciência se encontre neste elemento, no reino do Espírito, no Espírito, que encontra a sua mais pura expressão, no seu devir.
A imediatez do espírito é a reflexão, a essência do espírito é a reflexão, e é uma «essencialidade transfigurada» porque sofreu o processo de ir ás coisas e a si voltar.
Como podemos nós chegar a este patamar?
Temos de ir às coisas, ao outro, para a nós regressarmos. Mas como pode a ciência, que reside em certo nível, dar-nos a escada para a ela chegar-mos?
E este ir ao outro, não é uma perda de si por parte da consciência?
A ciência em si mesma é o inverso da consciência de si mediata. Mas o espírito é esta superação e conservação de opostos.
Temos de partir do mais elementar, que conservamos até ao «fim» do trajecto.
Temos de ir às coisas, elas ficam a fazer parte daquilo que se aproxima como resultado. Através de uma via sacra científica, um longo percurso, como diz Hegel.

Bibliografia:

- Hegel, G., Prefácio da Fenomenologia do Espírito, in Prefácios, trad. Carmo Ferreira, Lisboa, INCM, 1990,

Sunday, July 22, 2007

Nietzsche

Preâmbulo
«Talvez , neste aspecto , me pudessem imputar muita «arte» , muito refinado fabrico de moeda falsa :por exemplo , que eu tivesse consciente e deliberadamente fechado os olhos ante a cega vontade moralista de Schopenhauer , numa época em que eu já era assaz clarividente quanto à moral ; de igual modo , que eu me tivesse enganado quanto ao incurável romantismo de Richard Wagner , como se ele fosse um começo e não um fim ; de igual modo , acerca dos Gregos ; de igual modo , acerca dos Alemães e do seu futuro ...E , talvez , houvesse ainda toda uma lista de outros casos semelhantes ?...»1 .
Temas como os contrários , a convenção , o esquecimento , o sonho , a perspectiva , os erros da razão , enfim ,alguns dos lugares comuns de Nietzsche , são claras indicações do método histórico , ou melhor genealógico , utilizado por Nietzsche no seu olhar de filósofo , e o facto de que o autor ter começado os seus estudos na área da filologia (arqueologia das palavras , palavras enquanto conceitos) , e a sua apetência pelo espaço de reflexão da Antiguidade clássica grega , são características que combinadas ajudam a entender a análise feita pelo autor ao processo de avaliação das avaliações , ou em rigor , a entender a possibilidade e objectividade do juízo moral , bem como o carácter convencional da linguagem , a par do valor consequente da verdade e da mentira .
Da observação que algo gera o seu contrário , observação vulgar com tom de banalidade , como por exemplo , o facto de por vezes o amor surgir do ódio e vice-versa , «(...)o racional do irracional , o sensível do inânime , a contemplação desinteressada do ávido querer , a vida consagrada a outros do egoísmo , a verdade dos erros ?»2 , surge uma suspeita que vai ser denotada por Nietzsche como a que conduz à «grande separação» , que acontece no seio do espírito comprometido , e que atenta contra a Metafísica dogmática e a Moral .Cisão dolorosa na medida em que a certa altura se propaga a tudo em que o espírito acredita , podendo conduzir a uma «provável vitória do cepticismo».
Esta suspeita em relação a tudo o que é mais «forte», «sagrado» , permite uma abertura polisémica que a dúvida não possui , e consequentemente torna mais perturbador este acto a quem suspeita ... «De que lugar , nesta constelação poderia vir ao mundo o instinto da verdade?»3, e neste movimento de suspeição , a procura da origem , com a inversão dos sentimentos e conceitos (no pôr em causa a própria «medida» de avaliação) vai inaugurar uma nova atitude que assenta na compreensão da transmutação dos sentimentos morais , como um processo natural que faz parte da história das culturas , arredando de vez a noção de contrários irremediáveis e irreconciliáveis , que eram os alicerces do «outro mundo» em que se baseava a metafísica dogmática.

Tal como a linguagem (no AVMSE) permitiu a formação de um edifício de conceitos que por sua vez forma a ciência (e em que na base se encontra uma convenção social ), também no HDH se solta a suspeita de que tudo aquilo que encaramos como «estimativas habituais » e «hábitos estimados» é demasiadamente humano , fruto da convenção e de um erro da razão que é a subsunção do juízo (inclusão de acto ou comportamento na esfera de um conceito).

O pensar de Nietzsche transforma o conceito envolvido no juízo em núcleo problemático , centrando a atenção não na acção , mas na legitimidade do conceito que engloba essa mesma acção .Nesta «caça» de particularidades do universal , isto é , do conceito , o conceito enquanto realidade que advém de um devir histórico , evolução , é alvo de uma «(...)observação em movimento , em que o observador compara , diferencia , persegue vestígios , continuidades e interrupções.»4 .

Aqui se nota uma articulação com o perspectivismo .
Se no AVMSE tínhamos chegado à noção de um perspectivismo em relação ao conhecimento , mercê de um X enigmático inapreensível , aqui é o juízo moral que fica comprometido , pois o que assolou como erro todo o pensamento moral foi o facto de o juízo moral assentar em conceitos separados e sem conexão recíproca , fazendo desconhecer a sua íntima relação com os seus contrários num espaço interperspectivista.

Os conceitos de «bom» , «justo» , «livre» , etc. ,não só são denotados com palavras que são convenções sujeitas à mudança dos tempos e das culturas , como também interagem entre si numa teoria perspectivista do juízo. As coisas , as ideias , os conceitos , tem uma história , e é um erro tomar a «coisa» e esquecer o que a originou.
«A perfeição não teria a sua génese. Estamos habituados , perante tudo o que é perfeito , a omitir a questão do seu processo evolutivo , regozijando-nos antes com a sua presença , como se ele tivesse saído do chão por artes mágicas.»5 .
No dizer de Hegel , é deitar fora a criança com a água do banho.
Em suma , o que se tenta mostrar aqui , é que não há chão seguro onde assentar a moral.
«A suposição de uma correspondência entre as nossas afirmações e as coisas do mundo , apoia-se certamente na crença de entidades incondicionais , desconexas , esquecendo o elemento perspectivista subjacente a todas essas afirmações .»6.
Quer em relação ao conhecimento , quer em relação ao juízo moral.

«(...)não existem juízo e objecto avaliado puros fora de um sistema em que as próprias avaliações interagem e conflituam .»7.
O sujeito que se apresenta perante um objecto é fruto de uma evolução histórica , de processos que o levam até ao momento em que tem contacto com o objecto , logo o modo de ver também não é sempre o mesmo .O mesmo indivíduo apreende de maneira diferente as coisas quando tem por exemplo , dez anos , dez anos e um segundo , ou vinte anos .Outro exemplo é o de um estudante de Filosofia que entre num laboratório qualquer terá um modo de apreensão das coisas diferente de um estudante de Química que entre no mesmo laboratório. É o que se pode chamar como preparação do olhar, em que tudo o que fica para trás , de certo modo molda a apreensão num determinado momento do presente e do futuro.

Tal como o juízo também é resultado de processos que influem na avaliação , pois os conceitos estão intimamente ligados uns com os outros ,vários conceitos estão presentes na esfera do conceito «bom».Cada um dos quais tem uma história própria , em si , enquanto algo dado por uma cultura a um indivíduo , e esse indivíduo sofre alterações quer em relação a outros conceitos já em si existentes , quer em relação à própria personalidade do indivíduo(questão dos valores , etc.).
Ou seja :«Devias aprender a entender o elemento perspectivo que há em toda a apreciação – a deslocação , a deformação e a aparente teleologia dos horizontes e tudo o mais que pertence ao domínio da perspectiva ; (...)»8.
Devido à avaliação ser deformante , é sempre perspectivista.

As sensações , emoções são tomadas pelo sujeito consciente como algo isolado , incondicionado , desconexo , como se surgisse de nós próprios «(...)sem ligação com o anterior ou o ulterior.»9.

Assim , se tudo o que se observa , se sente , não é tão claro e discernível , que podemos nós realmente dizer das coisas , que podemos nós assertar em relação ao conhecimento e à moral ?
O que posso (des) conhecer ? Depende das perspectivas...
O que devo fazer ? Depende das perspectivas...
Para um homem com o impulso da verdade , sedento de chão seguro , ou de uma balsa salva-vidas , estas respostas podem conduzir ao desespero .
Parecem ruir aqui 2400 anos de tradição filosófica ocidental.

«Mas a nossa filosofia não se torna assim em tragédia? A verdade não se torna hostil à vida , ao melhor?(...)se se pode permanecer conscientemente na inverdade?(...)Se assim é , restaria uma única maneira de pensar , que acarretaria como resultado pessoal o desespero , como resultado teórico uma filosofia da destruição?»10





Sinopse das questões mais importantes do AVMSE:



) 1 – Conhecimento

) 2 – Linguagem

) 3 - Ciência


I ) Conhecimento

A)- O seu valor relativo :
O minuto mais hipócrita

Nietzsche ironiza e desmascara uma presunção humana que valoriza um acto ( o conhecimento ) com pretensão a ser centro ( Universo ) , quando o centro transcende o acto . A parte mais incisiva da ironia está no facto de que a narração da fábula aponta para uma inversão da relação homem/universo operada pelo próprio possuidor e produtor do intelecto , como se ele fosse o eixo do mundo , o Universo , o « voltado para o uno » , está de facto voltado para a unidade do mundo do homem (errada) o seu intelecto . O homem aqui toma ares de filósofo , o mais orgulhoso dos homens , na sua actividade de conhecer , na vaidade para com o seu intelecto , julga-se o centro de tudo .
« Pois não há para este intelecto uma missão mais vasta que exceda a vida humana .»11
Não existe nada mais censurável , como o intelecto humano sapo que se incha olhando o boi , ( fábula ) a um pequeno sopro da força do conhecimento .
Este orgulho cria a ilusão de que o conhecimento das coisas por parte do intelecto é possível .
Aqui o orgulho comporta dois pontos de vista que o podem explicar :
1)o espanto que as coisas exercem no homem , (é o homem que se espanta , ou as coisas é que são espantosas ? )
2)um sentimento de descoberta , de afirmação de vida e força , na medida em que o conhecer é tornar seu , antropomorfizar , é fugir à dúvida e dar sentido , o homem torna-se orgulhoso porque descobre o « segredo » e descobre-o com as suas capacidades . Daí a expressão de Nietzsche ao afirmar que a invenção do conhecimento , foi o momento mais soberbo e hipócrita , soberbo porque é uma afirmação de vida e pujança do ser humano , hipócrita pois condenado sempre ao fracasso , pois o conhecimento é uma ilusão.

A1)- A fábula
O Universo aparece nesta primeira metáfora como algo tocado pela mão do imenso e especialmente , do indefinido , numa tríade de opostos :
1)infinito do mundo / minuto da história universal
2)inúmeros sistemas solares / canto afastado
3)inúmeros sóis / sol único
Para reforçar o carácter de irrelevância desta actividade humana , Nietzsche utiliza uma narrativa em tom épico , pois ao relatar a posterioridade desse fugaz momento , « (...) a estrela congelou e os animais inteligentes morreram . » 12 acentua a imperturbabilidade cósmica ante a invenção usurpadora ( do centro ) dos animais inteligentes , que usurparam comicamente o centro do Universo , um pouco como a epopeia de Prometeu ao ludibriar Zeus e ao roubar o fogo divino , em prol dos homens .

A2)- O homem
Como o professor Fernando Belo mostra , no seu LAN13 , a primeira parte do texto contém já a semente programática do ulterior desenvolvimento . Prova mais evidente disso mesmo é já a oposição entre um animal inteligente que inventa conhecimento , e outro que inventa uma fábula . A invenção do conhecimento provém de uma actividade do intelecto , que é uma relação do homem com o Universo , e nessa actividade pode assumir o homem duas atitudes , a de filósofo ou a de fabulista (poeta ? ) .


B1)- Relatividade do conhecimento
« Não lhe esconderá a natureza a maior parte das coisas , mesmo sobre o seu corpo , com a finalidade de o manter afastado das dobras dos seus intestinos , da corrente rápida do seu sangue , das vibrações complexas das suas fibras , com uma consciência orgulhosa e quimérica ? Ela atirou fora a chave (...) »14
A natureza deitou fora a chave de todo o conhecimento sobre ela .
E o que é que nós conhecemos de nós próprios ?
Como podemos caracterizar esta relação do homem com um universo e um corpo cuja realidade é desconhecida ? Como reage a « consciência orgulhosa e quimérica » , que se vislumbra não em « si mesma » , mas enquanto actividade ? O que é a consciência ?
A consciência é um foco de atenção que incide sobre algo , que apreende algo fora de um sujeito . O sujeito apenas tem consciência de si através da consciência da actividade da sua consciência , isto é , por exemplo se olhar para um passarinho , tenho consciência dele , e tenho consciência que tenho consciência de algo (o passarinho ) .
Assim , podemos perguntar :
Nem da nossa própria consciência podemos ter uma consciência pura , isto é , sem a interferência de algo que não seja a própria consciência ?

« A «coisa em si » ( que seria precisamente a verdade pura sem consequências ) , mesmo para quem desse forma à língua , é totalmente inatingível e não vale portanto , os esforços que exigiriam . »15
E contudo , o homem caminha para o mundo de braços abertos numa tentativa de assimilação .
Este mesmo homem que se apercebe da miríade de percepções além da sua , como a do morcego , a do golfinho , da abelha , do cão , do crocodilo , etc., apercebe-se destas irredutíveis diferenças , nos sentidos , (olfacto , tacto , visão , audição , paladar ) em relação aos animais , e também nas diferenças ao nível da posição na cadeia alimentar , no tamanho , etc. , num conjunto de factores que como Nietzsche afirma , impossibilita um padrão de percepção correcta , que por sua vez possibilitaria estabelecer a percepção mais correcta . Assim , todos nos apercebemos do mundo de modos diferentes , igualmente válidos .
A riqueza dessa variedade de percepções do mundo , reside no mundo ou reside em nós? Isto é , o facto de existirem diversas percepções de um mesmo mundo (?) , significa que essas diferenças residem nos sujeitos que percepcionam , ou no mundo , sumamente rico em estímulos diversos ?
É uma questão difícil , mas Nietzsche dá pistas para ela. É que não vale a pena estar a pensar no mundo , pois ele é um X sempre inacessível e indefinível .
O caminho a seguir , assenta fundamentalmente na irredutível oposição entre a esfera do sujeito e do objecto , um sujeito que recebe estímulos provocados pelo objecto , que fazem parte do objecto , mas que por entrarem na esfera do sujeito necessitam de uma « tradução » desse mesmo objecto , por parte do sujeito .
Por exemplo não nos devemos esquecer da preparação do olhar . Voltemos ao exemplo de um estudante de filosofia que ao entrar num laboratório de Química , tem uma perspectiva muito diferente de um estudante de Química , obviamente não só por serem pessoas diferentes , mas porque algo de « trás » condiciona o olhar de um e de outro .
A apreensão do real , mobiliza faculdades « tradutoras » , melhor designadas por Nietzsche como esfera intermédia , com poder livremente poético e inventivo , que é tão só o conjunto de experiências anteriores do sujeito cognoscente , o estado de espírito do sujeito cognoscente , etc., etc. .
Isto é , não basta haver várias perspectivas em relação ao objecto por parte do sujeito , e de todas as variáveis nele e no objecto , como a própria afectação das coisas não é apreendida livremente como conjunto de estímulos , mas já como interpretação .
« Um pintor ao qual faltassem as mãos e que quisesse exprimir cantando a imagem que tem à sua frente , revelaria mais ainda por causa desta troca de esferas , que o mundo empírico não revela a essência das coisas . »16
E mediante toda essa estrutura anterior ao estímulo , conjugada com a vontade de o apreender (esse poder poético e inventivo ), é que o estímulo proveniente do mundo se inscreve na estrutura enriquecendo-a . Assim , algo de indefinível , intraduzível , torna-se no sujeito « (...) uma transposição insinuante , uma tradução balbuciante numa língua totalmente estranha (...) »17 *(nota A)



« ... Não conhecemos as coisas em si e por si , mas apenas as suas imagens (abbild) no espelho da nossa alma . A nossa alma não é mais do que o olho , o ouvido , etc., espiritualizados . Cor e som não são próprios às coisas , mas ao olho e ao ouvido . Todos os abstracta , todas as propriedades que atribuímos a uma coisa , compõem-se ( zuzammenbilden ) no nosso espírito . »18



« (...) os olhos só deslizam pelas superfícies das coisas , e aí vêm « formas » , a sua sensação não conduz de forma alguma à verdade , mas apenas se contenta em receber excitações e tocar como sobre um teclado virado de costas para as coisas .»19

2)Linguagem
Fixemos a origem da linguagem no impulso humano para a verdade. Será este impulso para a verdade uma consequência utilitária , proveniente do contracto social ? Isto é , para evitar o todos contra todos , para formular uma convenção contra o caos , o homem não pode escapar , na sua inclinação gregária , ao que Nietzsche chama de paz .
Esta paz só é obtida mediante o fixar de regras comuns a todos os membros de uma comunidade , de modo a que o entendimento seja possível .
« Quer dizer que está agora fixado o que doravante deverá ser « verdade » , o que quer dizer que se encontrou uma designação das coisas uniformemente válida e obrigatória , e a legislação da linguagem fornece , inclusivamente , as primeiras leis de verdade : porque nasce aqui , pela primeira vez , o contraste entre a verdade e a mentira . »20
Ao criar essas qualidades que são os nomes , ou as palavras e os seus conceitos , dá - se uma antropomorfização dessa « verdade » , na medida em que se dão qualidades às coisas que elas não possuem , ou só possuem em parte , e sempre , sempre em relação com o ser humano , com a realidade humana e perspectivista como pano de fundo .
É um processo coxo de compreensão e interpretação do real .
Imaginemos este objecto que tenho na minha mão , e do qual eu não conheço o nome . Apenas sei que serve para se introduzir na extremidade de um tubo que enche as bolas de futebol , ou os pneus . A sua função é permitir o enchimento de um reservatório de ar , não deixando o ar que já lá se encontra , saia . Chamemos – lhe ponteira ou agulheta . Estamos a reduzir esta realidade a apenas um nome que é uma metáfora alusiva à sua forma (referente a outro objecto – agulha ) , ou à sua função (apontar ) .Se noutra ocasião alguém nos falasse em ponteira ou agulheta , lembravamos-nos desta , embora existam milhares de ponteiras ou de agulhetas diferentes . A sua função , e os seus traços gerais , passam a fazer parte do conceito de agulheta / ponteira , como se um aspecto fosse a totalidade do objecto .
Esta actividade é arbitrária ? É hipócrita , ou poética ?
Nota-se de novo o facto de a linguagem ser encarada mais na perspectiva de servir para solidificar o corpo social , que ser um garante de veracidade das coisas , e no entanto o homem , esquecido , toma-a como tal .

« A «coisa em si » ( que seria precisamente a verdade pura sem consequências ) , mesmo para quem desse forma à língua 21, é totalmente inatingível e não vale portanto , os esforços que exigiriam . Só designa as relações das coisas aos homens com a ajuda das metáforas mais astuciosas para a sua expressão . »22
Por exemplo , « televisão » significa visão à distância , « automóvel » significa algo que se move por si mesmo , que é causa do seu movimento , ou a definição de recta , como sendo um círculo com o centro localizado no infinito .
O que é uma metáfora ?
É um processo pelo qual se transfere a significação própria de uma palavra para outro significado que lhe convém apenas em virtude de uma comparação mental , por exemplo : - « luzes do espírito » ; « flores da alma » ; « chama do desejo » ; « mar de rosas » , etc. , ...
« Primeiramente transpôr uma excitação nervosa para uma imagem ! Primeira metáfora . A imagem de novo transformada num som articulado ! Segunda metáfora ! »23
Um estímulo forma uma imagem que tem mais do sujeito que do objecto , e essa mesma imagem mais rica do que o estímulo , reduzida a som .
Nietzsche alerta aqui para a inacessibilidade do sujeito em relação ao objecto .
Duas esferas distintas e no entanto julgamos nomear esta folha de papel , ao dizer «- folha . »
Que presunção , que crença ridícula , devido a termos esquecido que tudo é um enigmático X , inacessível .
Denotar é reduzir o múltiplo , o diverso , o subjectivo , a palavras que significam , ou representam apenas parte das realidades , e então , ao afirmar o nome de alguma coisa , reduzimos o real , e fazemos já um juízo de valor .

3)A ciência
O que é a ciência ?
É a busca da « verdade última » ?
A certeza absoluta não é possível , o carácter conjuntural do conhecimento adverte-nos que a ciência é a busca da melhor conjectura possível , sendo a melhor conjectura possível aquela que abrange mais casos , quer explicando , quer predizendo .
Não é a « verdade última » pois esta é inatingível . Uma teoria científica é um corpo de conceitos , que tenta explicar o real , e quanto mais teorias existirem sobre esse real , mais provas existem sobre a existência desse real .
O que são estes conceitos ? Para enriquecermos este debate e honrar Nietzsche ao cruzá-lo com outros autores , vamos atentar na afirmação de Rousseau de que :
« Os seres puramente abstractos não se vêem ou não se concebem senão através do discurso .»24
Rousseau desaprova , como Nietzsche , a conceptualização do real . e um dos pontos que ilumina na constituição da linguagem , é o facto de que num certo momento da evolução humana , tudo tinha um nome consoante a sua diferença ( sensível ) , e que essa diferença foi esquecida algures na evolução da sociedade e da língua , tirando ao real , o que de mais característico tem , a diferença, mesmo entre semelhantes .
A especulação , a abstracção partem exclusivamente da linguagem , que por sua vez , no sentido de denotar o maior número de coisas possível , «esquece» a irredutível diferença sensível das coisas .
Mais uma vez o sensível está presente enquanto primado , pois se é a partir dele que se forma a linguagem , também é a partir dele que o homem cria um mundo (linguagem )
Que é mais fruto do seu labor , que uma hipotética adequação de sons às coisas . A partir desta arbitrariedade é que foge o homem cada vez mais para longe do meio natural , à medida que forma o seu castelo de conceitos .
« Aliás , as ideias gerais não podem entrar no espírito senão com a ajuda das palavras e o entendimento não as alcança senão através de proposições . »25
Nada temos no entendimento que não tenha já estado nos sentidos . O conceito igualiza o diferente , e se não passa de um substantivo ou adjectivo quando o afirmamos , quando o aplicamos ele submete-se imediatamente ao particular . O conceito de « dureza » (como o utilizado por Nietzsche ) , é uma propriedade que alguns objectos «possuem» , mas existem vários graus de dureza , e quando imagino um do qual eu já tenha tido experiência , para comparar , perde o conceito o seu grau de universalidade , na medida em que se reduz à comparação efectuada pelos sentidos , num tempo anterior , pelo sujeito que o utiliza .
O que se quer aqui dizer é que o conceito , não só provém do discurso , como os próprios juízos que fazemos das coisas (atribuindo-lhes qualidades , por exemplo ) , são delimitações arbitrárias construídas pelo homem reduzindo o sensível a degrau para o abstracto , e considerando por vezes esse abstracto tão longínquo daquilo onde nasceu , como verdade .



1)A maternidade dos conceitos :
« Todo o conceito nasce da identificação do não idêntico . »26
Como já foi exposto , denotar é reduzir o múltiplo , o diverso , o subjectivo , a palavras que denotam ou representam apenas parte das realidades . Porque a palavra só serve para a comunicação em comunidade (relação), tem de sustentar um significado comum a todos os elementos da comunidade . Não posso nem pensar , nem denominar algo que não conheço . Para podermos falar de por exemplo , um armário , temos de fazer mais ou menos ideia daquilo que é significado , indicado pela palavra « armário » .
Ao olhar um armário memorizo a sua forma , a sua função . Sempre que um objecto ,

mesmo completamente diferente tenha uma forma semelhante ou uma função idêntica , em relação ao armário , denominaremos esse objecto de armário .
O conceito nasce da semelhança entre as coisas .
O que Nietzsche denuncia é que nos esquecemos que os conceitos que temos das coisas provém das coisas , e do esquecimento das desigualdades entre elas .
Que sabemos nós da « armariedade » , a não ser que é comum a todos os armários ?
« A omissão do individual e do real dá-nos o conceito (...) »27
Na posição de Nietzsche , na natureza não existe a armariedade , e todas as qualidades que existem para o homem como gerais a todas as coisas , são qualidades que o homem coloca nas coisas , de modo a poder gerir a sua apreensão do real .
Como também já vimos , a isto chama Nietzsche de antropomorfização .
Parafraseando o autor , os nossos conceitos não são pertença da essência das coisas , pertencem antes à esfera do sujeito , embora possam corresponder a essas mesmas coisas .
Temos de voltar a frisar a inacessibilidade e indefinibilidade do X .
Esta conceptualização do real é criticada por Nietzsche não só devido à arbitrária mistura de duas esferas irredutíveis entre si (sujeito e objecto ) , mas também à suposição de que o produto dessa mistura é uma verdade superior às próprias coisas .
« Tudo o que distingue o homem do animal depende desta capacidade de fazer volatizar as metáforas intuitivas num esquema , logo dissolver uma imagem num conceito .»28
Ao tomar o reflexo de um reflexo , pelo original , reduzo o real às minhas abstracções .

2)O edifício :
Estes esquemas são fruto do labor de um intelecto esquecido e temente , que reduz a inescapável singularidade de cada experiência a uma escadaria hierárquica de metáforas , numa actividade de « (...)construir uma ordem em pirâmide segundo castas e graus (...) » que o homem iludido toma como o mundo mais verdadeiro , onde o que ele lá põe , é para ele o mais imutável da natureza que deitou fora a chave .

Também o conceito na sua génese é resultado da arbitrariedade , da ilusão do esquecimento . Notar também que os conceitos científicos são fixados filosoficamente , o que implica , como sabemos , uma grande panóplia de ideias e interpretações .

Neste jogo de regras a verdade é aquela mais conforme às regras , isto é , aquela que é mais fruto do homem e distante das coisas .
Que fruto é este ?
Nietzsche diz que é « (...) o espaço , o tempo , isto é , relações de sucessão e de números (...) »29 ,.
Como em Kant , só podemos apreender as coisas se elas estiverem numa experiência delimitada espácio-temporalmente . Só podemos receber estímulos espácio-temporais .
Estas relações de sucessão e números são a matemática que ordena os conceitos e os transforma em construções imensas .
E isto porque se toma o conceito como se toma o estímulo sensível , e de cada vez que se opera essa função , o homem coloca cada vez mais de si (espaço e tempo ) naquilo que analisa .
«Toda a legalidade que nos impõe no curso dos astros e no processo químico coincide no fundo com estas propriedades que nós próprios concedemos às coisas , de forma que nos impomos a elas por este facto. »30

Assim , « (...) um tal investigador considera o mundo inteiro como ligado aos homens , como o eco infinitamente degradado dum som original , o do homem , como a cópia multiplicada de uma imagem original , a do homem . o seu método consiste em tomar o homem como medida de todas as coisas : mas assim parte do erro de acreditar que estas coisas existiriam como puros objectos diante dele . Esquece pois as metáforas originais da intuição enquanto metáforas e toma-as pelas próprias coisas . »31

A ciência também é a metamorfose do mundo no homem .

3)O intelecto :
Ao longo desta exposição , inverteu-se por vezes a ordem de certos tópicos , de um modo intencional , para que se possa mostrar a solidez do argumento do autor .
Assim se procede agora com o retorno à questão do intelecto .

« A forma é fluida , porém o «sentido» ainda é mais .»32
O intelecto é um instrumento do homem , o instrumento do homem em substituição das garras , presas ou chifres que ele não possui . Ao invés , possui um intelecto que o auxilia na sobrevivência , e que é o seu instrumento natural .
Como é que o intelecto auxilia o homem na sobrevivência ?
Mediante a explanação das suas capacidades de dissimulação .
O homem nada tem em si que seja comum aos predadores , a não ser o mais aguçado instinto gregário . Mas até entre as espécies mais gregárias , existem características fisionómicas mediante as quais a sobrevivência é assegurada . Por exemplo as presas dos lobos , ou a extraordinária coordenação dos cardumes . Mesmo entre os primatas , uns estão munidos ou pela força ou pela agilidade , coisas que na escala da vida , não pertencem ao homem .
A dissimulação no homem , tem uma dupla vertente .
Intra-específica e extra-específica .
A vertente extra-específica é aquela que permite ao homem , através da astúcia , da emboscada , capturar as presas , escapar dos predadores ou eliminá-los .
A vertente intra-específica faz-nos remontar ao início do texto onde são os animais inteligentes (no plural ) , que inventam o conhecimento . Ou seja , aqui a dissimulação atinge a sua mais limada e refinada aresta , no seio de seres gregários , mais fracos , menos robustos , enfim animais políticos que se relacionam entre si através da ilusão , da lisonja , da mentira e da fraude , falando nas costas dos outros , representando , vivendo no brilho emprestado , usando máscaras , convencionando jogos perante os outros e perante ele próprio .
Se o homem respira dissimulação , para que quer ele a verdade ?
Esta vertente de dissimulação do intelecto é utilizada para sobreviver , e para conquistar ou manter o poder , o que reduzido até um certo ponto pode ser comparado .
Fora de um juízo moral , pois é natural que assim aconteça pela existência . A vida é algo pelo qual se luta com as armas disponíveis .
Nietzsche encara esta naturalidade como a «normal servidão » do intelecto , ( submetido à existência , em vez de ser criador da mesma ).

4)A verdade * (nota B ) :
a)porquê «Acerca da mentira no sentido extramoral»?
porque o indivíduo em face dos outros se quer conservar ;
porque o homem quer existir social e gregariamente em paz ;
Institui o que doravante será a verdade , para minorar o todos contra todos , e para escapar às consequências adversas do logro .
Verdade e mentira extramoralmente pois não são contrários morais , mas convenções de preocupação social , ( e pessoal ) .
A verdade e a mentira não são na sua génese , valores morais , mas antes alíneas do contrato social . O valor da verdade e da mentira dependem do obediente uso da linguagem , com fim à manutenção e coesão social .

A verdade é a mistura entre a celebração da vida e o esquecimento .* ( nota C)


b)O esquecimento :
« É apenas graças `a sua capacidade de esquecimento que o homem pode chegar a crer que possui uma «verdade» no grau que acabámos de indicar .»33
esquece-se o inacessível e indefinível X , a arbitrariedade e convencionabilidade das palavras e dos conceitos , o elemento diferenciador das coisas .
O homem esquece-se que «(...) as verdades são ilusões esquecidas enquanto tais (...) ».

c)O impulso :
Nietzsche questiona três vezes , como ou de onde , a partir dos processos operados pelo homem , vem o impulso para a verdade .
Chegar a esta resposta , é chegar ao precioso concluir de um processo de reflexão sobre : o valor da vida e a sua celebração .

O minuto mais soberbo
É o minuto mais soberbo , porque é o minuto da criação .
Logo no início do texto ficou patente a dualidade imanente da acção humana .
Se por um lado o homem é inventor de fábulas , por outro toma-as como reais e esquece-se que foi ele que as produziu , submete-se a elas .
O desconhecido amedronta , a dúvida é desesperante .
Porque é que quando somos crianças , tudo nos parece mais vivo , mais fabuloso e incrível ?
Porque os sentidos estão fisiologicamente melhores ?
Porque o mundo é visto de uma perspectiva mais fantástica , quimérica ?
É esta a terceira transmutação , a da criança maravilhada com o Cosmos e consigo própria ?
Indubitavelmente este espanto confere valor à vida .
Perante o espanto que o mundo é , o homem sente-se espantoso .
Nada há de tão censurável e limitado como o intelecto humano vergado para o que não celebra a vida , e que o verga .
Iludido , o homem julga que abraça o mundo com os dois braços pequeninos do seu entendimento , e também se enche de orgulho , devido à vaidade que passa a ter do seu intelecto .
Este orgulho cria a ilusão de que o conhecimento realmente permite conhecer as coisas .
Este mesmo orgulho é também um sentimento de descoberta , de afirmação de vida e força , na medida em que o conhecer é tornar seu , antropomorfizar , fugir à dúvida e dar sentido ...O homem torna-se orgulhoso porque julga descobrir o sentido , o «segredo» , e ainda por cima com as suas capacidades , e todo este labor só é pernicioso quando o homem se esquece do maravilhoso do mundo , e consequentemente , em si o maravilhoso se torna opaco .

O homem é um criador , onomaturgo , demiurgo , por fim , todos eles ... fabulista .
O homem tem um impulso para a formação de metáforas , uma irresistível atracção pelo mundo , e quanto mais criador é o homem , mais rico e exuberante é o mundo , tomado a seus olhos , de fabulista ...torna-se a vida mais preciosa .
«Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo se mantém um ao lado do outro , um por medo da intuição , o outro desdenhando a abstracção ; e o último é quase tão irracional como o primeiro é insensível à arte . Ambos desejam dominar a vida (...) » 34.
No fundo , este texto tem implícito um celebrar da vida . Puxa-nos o tapete debaixo dos pés e acorda-nos para um certo tipo de suspeita , no olhar e em relação à verdade .
Suspeita , que como atitude mental próxima de um pathos , permitiu a indagação logo no início deste trabalho , de algo tão dado como certo , como é o caso da linguagem , do conhecimento .
Vimos como nasce a suspeita , como se desenvolve , como nessa rotura somos levados a procurar vestígios ...
Vimos também como as regras fundamentais da linguagem são relacionais , e como as coisas operam em primado , quando comparadas com os sinais que as significam .
Constatámos que todo o conhecimento provém dos sentidos , e analisámos o texto proposto , no ponto de vista de que , só um poeta , um onomaturgo , forma a linguagem , e que só um louco se pode esquecer do absurdo que é procurar sentido no mundo a partir do silêncio do próprio mundo .

O que é a verdade ?

Nota A :
Perspectivismo : o conhecimento humano é perspectivo – as nossas representações do mundo não no-lo apresentam tal como é , nem constituem formas de apreensão das coisas em si mesmas , e que nenhuma das perspectivas nas quais se organizam os nossos conceitos respeitantes ao mundo pode ser considerada portadora de uma verdade definitivamente superior às das outras .

O perspectivismo , como um dos temas de reflexão da gnoseologia , atinge um dos seus pontos mais altos na revolução copernicana operada por Kant em que o afastamento da atenção filosófica da essência das coisas acontece a favor da estrutura do sujeito .Nada nos garante a priori , que algo que se repete anteriormente se vá repetir agora ...O nosso conhecimento tem uma disposição de ordenar os factos que se repetem mediante o hábito , manifestando uma crença na repetição dos factos , costume ou hábito a ocorrência repetida dos fenómenos .
Esta capacidade de previsão de ocorrências é autónoma em relação a qualquer genuíno acto de conhecimento dos objectos .
Assim , se tudo não passa de perspectivas , tudo tem o mesmo valor , ou a mesma relatividade ?

Hierarquia das perspectivas : se existe diferenciação entre perspectivas , qual é o critério que permitirá dizer que se está mais próximo de uma descrição do mesmo estado de coisas ,mais completa ?
O grau mínimo será então uma validade partilhada por várias perspectivas , e portanto é um elemento pré-perspectivo .

Nota B :
A verdade: verdade para Heidegger é a revelação e manifestação do ser , mais do que qualquer adequação entre o intelecto e a coisa . O homem encontra-se sempre na verdade do ser , porque o homem é . E é a verdade originária como desvelamento do ser , e a essência da verdade consiste na liberdade do ser o que é , e mostrar-se naquilo que é .
«L’essence de la vérité s’est dévoilée comme liberté»35
« Dans le Da-sein se conserve pour l’homme le fondement essentiel (...)»36

«Le vrai est donc le réel . »37

Nota C:
O esquecimento :duplicidade do problema da memória: 1) inscrição anterior à experiência actual para permitir enquadrar ;
2)ao mesmo tempo que para se notar a experiência como nova , algo não apreendido anteriormente tem de ser apreendido ... Como reconhecer o que não se reconhece?
















«Então , hoje , eu que oportunamente libertei o espírito de todos os cuidados e me procurei um ócio seguro num retiro solitário , vou dedicar-me , por fim , com seriedade e livremente , a destruir em geral as minhas opiniões.»38


A orientação deste trabalho foi no sentido de tentar descobrir o nexo entre a obra Humano , demasiado humano (doravante HDH) e o respeito que Nietzsche mostra nutrir por Voltaire , uma vez que a obra lhe é dedicada , e assim abordar uma perspectiva diferente com o fim de clarificar um pouco o que Nietzsche quer dizer quando fala em espírito livre.
Não é fácil .Fundamentalmente porque é um terreno de difícil exploração , e para tal não conta só o facto de que o modo de escrever do autor , de tão rico , que não facilita uma leitura repetida e o nascer constante de novos horizontes de sentido (que enriquecem a interpretação , mas tornam difícil a sua exposição) e porque apesar de claro , Nietzsche é enigmático e fala-nos de mecanismos e processos « desprezados » que exigem muito da nossa compreensão. Mas é gratificante .

A noção que mais resistiu após a leitura , foi a de que o espírito livre é uma narração da vida interior do autor , do seu próprio percurso .
Neste trabalho , vai-se tentar mostrar como é composto esse percurso , onde o elemento principal do mesmo é denominado por Nietzsche como «a grande separação» , antes da qual se situa a quebra de todos o laços que outrora enredavam todas as suas convicções , quer a nível da «imagem» que o sujeito tinha do mundo , quer a nível daquilo que ele achava que devia ser a sua conduta no mundo dos homens. Em suma , encontramos aqui no primeiro momento um questionar da Metafísica e da Moral , questionar esse que provém da suspeita , acto perturbador do espírito que compara o que observa com aquilo que todas as convicções e delimitações em si residentes mostram não ser bem definido , e delimitado . A «grande separação» é o momento em que o espírito se liberta destas correntes de reverência para com as suas crenças , e doravante as deixa tão sujeitas a exame como todas as outras , e tal não é o nível de suspeita que não podia ser de outro modo. Após muito penar , o espírito volta a si .Este retorno a si , dá-se com o estabelecimento daquilo em que agora vai acreditar.
Dá-se aqui uma clara manifestação do ser na exacta medida em que acontece , enquanto processo de exame , desconstrução , destruição , ligação de tudo o que nele já estava inscrito , e de tudo aquilo que ainda vai apreender.
Caracterizando o espírito livre como aquele que sofre este processo , podemos dizer que:
« Não devemos permanecer dependentes das nossas próprias virtudes , nem fazer o sacrifício do nosso ser total , em favor de qualquer particularidade (...).Devemos saber conservar-nos a nós mesmos , que é a prova mais forte de independência.»39
Atentemos então nesta «epopeia» do espírito.




I
Prelúdio a uma grande separação:

Tendo vários pontos de contacto com as obras que a precedem , a obra HDH , é mais que uma simples «melhoria» temática ou de estilo.
Se alguns indícios apontavam já a germinação deste livro , nomeadamente em «O Nascimento da Tragédia» (doravante ONT) e no ensaio «Acerca da verdade e da mentira num sentido extramoral» (doravante AVMSE) , o que é certo é que a obra de 1878 inaugura um novo terreno de reflexão , e sendo um livro para espíritos livres , nele também se manifesta um espírito que luta pela liberdade (e quanta verdade pode um espírito suportar?) , um espírito que se colou na cauda de cometas para ganhar impulso , mas que decide ser ele a dar a orientação...
«Talvez , neste aspecto , me pudessem imputar muita «arte» , muito refinado fabrico de moeda falsa :por exemplo , que eu tivesse consciente e deliberadamente fechado os olhos ante a cega vontade moralista de Schopenhauer , numa época em que eu já era assaz clarividente quanto à moral ; de igual modo , que eu me tivesse enganado quanto ao incurável romantismo de Richard Wagner , como se ele fosse um começo e não um fim ; de igual modo , acerca dos Gregos ; de igual modo , acerca dos Alemães e do seu futuro ...E , talvez , houvesse ainda toda uma lista de outros casos semelhantes ?...»40 .

Temas como os contrários , a convenção , o esquecimento , o sonho , a perspectiva , os erros da razão , além de atingirem mais maturidade no HDH , são claras indicações do método histórico , ou melhor genealógico , utilizado por Nietzsche no seu olhar de filósofo , e o facto de que o autor ter começado os seus estudos na área da filologia (arqueologia das palavras , palavras enquanto conceitos) , e a sua apetência pelo espaço de reflexão da Antiguidade clássica grega , são características que combinadas ajudam a entender a análise feita pelo autor ao processo de avaliação das avaliações , ou em rigor , a entender a possibilidade e objectividade do juízo moral.

Da observação que algo gera o seu contrário , observação vulgar com tom de banalidade , como por exemplo , o facto de por vezes o amor surgir do ódio e vice-versa , «(...)o racional do irracional , o sensível do inânime , a contemplação desinteressada do ávido querer , a vida consagrada a outros do egoísmo , a verdade dos erros ?»41 , surge uma suspeita que vai ser denotada por Nietzsche como a que conduz à «grande separação» , que acontece no seio do espírito comprometido , e que atenta contra a Metafísica dogmática e a Moral .Cisão dolorosa na medida em que a certa altura se propaga a tudo em que o espírito acredita , podendo conduzir a uma «provável vitória do cepticismo».

Esta suspeita em relação a tudo o que é mais «forte», «sagrado» , permite uma abertura polisémica que a dúvida não possui , e consequentemente torna mais perturbador este acto a quem suspeita ... «De onde , com os diabos , vem nesta constelação o impulso da verdade?»42, e neste movimento de suspeição , a procura da origem , com a inversão dos sentimentos e conceitos (no pôr em causa a própria «medida» de avaliação) vai inaugurar uma nova atitude que assenta na compreensão da transmutação dos sentimentos morais , como um processo natural que faz parte da história das culturas , arredando de vez a noção de contrários irremediáveis e irreconciliáveis , que eram os alicerces do «outro mundo» em que se baseava a metafísica dogmática.

Tal como a linguagem (no AVMSE) permitiu a formação de um edifício de conceitos que por sua vez forma a ciência (e em que na base se encontra uma convenção social ), também no HDH se solta a suspeita de que tudo aquilo que encaramos como «estimativas habituais » e «hábitos estimados» é demasiadamente humano , fruto da convenção e de um erro da razão que é a subsunção do juízo (inclusão de acto ou comportamento na esfera de um conceito).

O pensar de Nietzsche transforma o conceito envolvido no juízo em núcleo problemático , centrando a atenção não na acção , mas na legitimidade do conceito que engloba essa mesma acção .Nesta «caça» de particularidades do universal , isto é , do conceito , o conceito enquanto realidade que advém de um devir histórico , evolução , é alvo de uma «(...)observação em movimento , em que o observador compara , diferencia , persegue vestígios , continuidades e interrupções.»43 .

Aqui se nota uma articulação com o perspectivismo .
Se no AVMSE tínhamos chegado à noção de um perspectivismo em relação ao conhecimento , mercê de um X enigmático inapreensível , aqui é o juízo moral que fica comprometido , pois o que assolou como erro todo o pensamento moral foi o facto de o juízo moral assentar em conceitos separados e sem conexão recíproca , fazendo desconhecer a sua íntima relação com os seus contrários num espaço interperspectivista.

Os conceitos de «bom» , «justo» , «livre» , etc. ,não só são denotados com palavras que são convenções sujeitas á mudança dos tempos e das culturas , como também interagem entre si numa teoria perspectivista do juízo. As coisas , as ideias , os conceitos , tem uma história , e é um erro tomar a «coisa» e esquecer o que a originou.
«A perfeição não teria a sua génese. Estamos habituados , perante tudo o que é perfeito , a omitir a questão do seu processo evolutivo , regozijando-nos antes com a sua presença , como se ele tivesse saído do chão por artes mágicas.»44 .
No dizer de Hegel , é deitar fora a criança com a água do banho.
Em suma , o que se tenta mostrar aqui , é que não há chão seguro onde assentar a moral.
«A suposição de uma correspondência entre as nossas afirmações e as coisas do mundo , apoia-se certamente na crença de entidades incondicionais , desconexas , esquecendo o elemento perspectivista subjacente a todas essas afirmações .»45.
Quer em relação ao conhecimento , quer em relação ao juízo moral.

«(...)não existem juízo e objecto avaliado puros fora de um sistema em que as próprias avaliações interagem e conflituam .»46.
O sujeito que se apresenta perante um objecto é fruto de uma evolução histórica , de processos que o levam até ao momento em que tem contacto com o objecto , logo o modo de ver também não é sempre o mesmo .O mesmo indivíduo apreende de maneira diferente as coisas quando tem por exemplo , dez anos , dez anos e um segundo , ou vinte anos .Outro exemplo é o de um estudante de Filosofia que entre num laboratório qualquer terá um modo de apreensão das coisas diferente de um estudante de Química que entre no mesmo laboratório. É o que se pode chamar como preparação do olhar, em que tudo o que fica para trás , de certo modo molda a apreensão num determinado momento do presente e do futuro.

Tal como o juízo também é resultado de processos que influem na avaliação , pois os conceitos estão intimamente ligados uns com os outros ,Vários conceitos estão presentes na esfera do conceito «bom».Cada um dos quais tem uma história própria , em si , enquanto algo dado por uma cultura a um indivíduo , e esse indivíduo sofre alterações quer em relação a outros conceitos já em si existentes , quer em relação à própria personalidade do indivíduo(questão dos valores , etc.).
Ou seja :«Devias aprender a entender o elemento perspectivo que há em toda a apreciação – a deslocação , a deformação e a aparente teleologia dos horizontes e tudo o mais que pertence ao domínio da perspectiva ; (...)»47.
Devido à avaliação ser deformante , é sempre perspectivista.

As sensações , emoções são tomadas pelo sujeito consciente como algo isolado , incondicionado , desconexo , como se surgisse de nós próprios «(...)sem ligação com o anterior ou o ulterior.»48.

Assim , se tudo o que se observa , se sente , não é tão claro e discernível , que podemos nós realmente dizer das coisas , que podemos nós assertar em relação ao conhecimento e à moral ?
O que posso desconhecer ? Depende das perspectivas...
O que devo fazer ? Depende das perspectivas...
Para um homem com o impulso da verdade , sedento de chão seguro , ou de uma balsa salva-vidas , estas respostas podem conduzir ao desespero .
Parecem ruir aqui 2400 anos de tradição filosófica ocidental.

«Mas a nossa filosofia não se torna assim em tragédia? A verdade não se torna hostil à vida , ao melhor?(...)se se pode permanecer conscientemente na inverdade?(...)Se assim é , restaria uma única maneira de pensar , que acarretaria como resultado pessoal o desespero , como resultado teórico uma filosofia da destruição?»49















«L’esprit ?Que m’import l’esprit !Que m’import la connaissance !Je n’attache de prix qu’aux impulsions , - et je jurerais que c’est là un trait que nous possédons en commun.
Regardez à travers cette phase dans laquelle j’ai vécu depuis plusiers années , - regardez derriére elle !Ne vous abusez pas sur mon compte.Vous ne croyez pourtant pas que «l’esprit libre» soit mon idéal ? Je suis ...
Pardon !Très chère Lou !
F.N.»50

II
A grande separação:


Ao descobrir o carácter demasiadamente humano da moral , o espírito outrora acorrentado ao dever e ao respeito , à reverência , dedica-se agora a desconstruir tudo aquilo em que acreditava.
Esforço imenso , para o qual é preciso coragem , resistência ao isolamento ... pois quem suspeita , desconfia e procura sempre algo atrás do véu , faz algo que só se pode fazer estando só , pelo facto de ser muito pessoal.
«(...)ciumentos da solidão , da nossa própria e profunda solidão , nocturna e diurna ; - eis o tipo de homens que nós somos , nós , espíritos livres !»51.

Esta suspeita em relação ao mundo , esta viagem em terra inóspita , faz com que o espírito que se quer libertar , tenha necessidade de se «agarrar» a algo para não sucumbir perante o nada. Porque o homem necessita de orientar a sua conduta no seio dos homens , e «(...)porque não é possível que os indivíduos e as sociedades se desfaçam daquilo que é essencial à sua preservação.»52.
Apesar de Nietzsche criticar a moral , não a abandona. O exame que faz clarifica e coloca o ponto fundamental na celebração da vida que o conceito esfriara , e fá-lo através do tópico da autodeterminação do espírito livre , retirando de certo modo , o estatuto «alienado» ou descentrado em que a moral tinha feito cair o homem em relação à sua vida.
«Tu devias tornar-te senhor de ti próprio , senhor também das tuas próprias virtudes.»53

Em relação a esta autodeterminação Nietzsche mostra como ele próprio fez quando voou nas gélidas alturas , inventando a partir de si mesmo os espíritos livres , ídolos que o acompanham no vazio (pois no vazio fica o homem quando as suas crenças estão em obras ) , e ídolos que são exemplos que fazem com que não se sinta só na sua missão , ao mesmo tempo que o fazem maior , quando se tenta auto-superar.
Os espíritos livres que inventou foram muletas que lhe permitiram saltar mais alto.
Eis que estes espíritos livres permitiram ao camelo tornar-se leão e ajudaram na travessia do deserto , até que a criança comece a estabelecer os seus valores.
Este espírito era camelo , espírito comprometido , comprometido com : « (...)aquele respeito , como convém à juventude , aquela timidez e delicadeza perante tudo o que é venerado desde há muito e digno , aquela gratidão pela terra em que cresceram , pela mão que os conduziu , pelo santuário em que aprenderam a adorar(...)»54.

Nietzsche tem consciência do seu pioneirismo , e é por isso que «arranca» de si mesmo aquilo de que necessitava para manter a sua verdade.
Mas «Esta primeira erupção de energia e vontade de autodeterminação , de autodefinição dos valores , esta vontade de ter uma vontade livre é , ao mesmo tempo, uma doença , que pode destruir o homem.»55.

Nietzsche criou para si os espíritos livres .
Apontou o caminho pelo qual os viu nascer.
Espíritos nados na suspeita , e que através dela retiram a natureza polisémica do mundo , e vivem com alegria esta liberdade , e que , longe de desesperar , celebram a vida «(...)em cujos degraus nos sentámos e pelos quais subimos , os quais , em dada altura , fomos nós próprios!»56.
«Já os vejo vir , devagar , devagar , e talvez faça alguma coisa para apressar a sua vinda , se , de antemão , descrever com que destinos eu os vejo nascer , por que caminhos eu os vejo chegar?»57

Em suma , um espírito sofre uma grande separação quando aquilo em que mais acreditava , perde força devido à suspeita que a dado momento se infiltra no seu modo de ver as coisas. Tudo aquilo que julgava ser , tudo aquilo que era incontestável e no qual se apoiava para viver , para compreender , de repente é colocado em causa , e como que o espírito se espanta e se envergonha. Espanto pela riqueza de sentidos e por algo a que o seu orgulho não responde que é a grandeza do mundo , vergonha por ter estado tanto tempo «ludibriado» convicto de que era no sítio em que escavava que estava o tesouro . Devo confessar que sendo um momento psicológico muito importante , não é para mim , de fácil expressão , quando quero ir além de uma paráfrase de Nietzsche.
Contudo o sentido mais forte desta separação é o facto de existir um espírito na actividade de se examinar e a tudo aquilo em que acreditava , num processo moroso de dissecação que não é fácil a quem quer descobrir a «verdade».













O retorno a si :

O que é um espírito livre? - «(...)um espírito que se tornou livre e que voltou a tomar posse de si mesmo.»58
É um espírito que através da suspeita em relação às coisas do mundo , ao mundo , se vira para si mesmo e se estuda , desconstruindo , destruindo quando necessário , tudo aquilo em que acreditava , e uma vez solto das cordas do dever e do respeito constrói através de si próprio aquilo que será digno da sua crença.
Considero esta imagem que Nietzsche nos mostra , como sendo o apogeu da espiritualidade , (mais tarde presente na sua obra «Assim Falava Zaratustra» ) e que a par de Sócrates , Descartes , Kant e Husserl definiram a mais importante perspectiva acerca da questão filosófica do espírito , na tradição filosófica ocidental.

Os espíritos livres foram uma invenção de Nietzsche , à maneira de um amigo imaginário de uma criança que se sente só (passo a expressão) .Porquê?
Porquê espíritos livres e não livres pensadores , como era apanágio designar nas Luzes?
Porque o espírito livre como operador da suspeita , tudo coloca em causa , o conhecimento , a moral , até (e especialmente ) a si mesmo , o livre pensador pensa por si próprio , mas porventura não analisará os instrumentos do pensamento (linguagem , moral , conhecimento ) , ou o pensamento . O livre pensamento não é assim um espírito livre , pois demasiada crença por destrinçar é carregada por si.

Como tudo , o espírito livre é fruto de uma evolução .
Qualquer espírito tem crenças , convicções , as quais toma como algo de imutável , sagrado e intocável , ou seja , tudo aquilo que o espírito considera digno de valor e pelo qual se norteia.
Num certo momento , instala-se a desconfiança quando se observa que por vezes algo surge do seu contrário . Este espírito quer por «medo» de ter sido vítima de um logro , quer por espanto perante o seu engano no seu acto de crença , quer por espanto por as coisas serem como são , quer por curiosidade por um mundo novo que pressente por detrás do véu , passa a respirar suspeita em cada movimento da sua atenção.
Desta vergonha , desta emancipação , facilmente se passa do momento passivo onde toda a crença anterior é colocada em xeque , à movimentação rebelde contra tudo aquilo pelo qual o espírito anteriormente se norteara , acreditara . Como que um prazer na inversão , um ressentimento , uma raiva (um abuso de força como prova de força?) que transforma o espírito em espírito «rebelde» contra tudo o que julga pertencer à ordem anterior.
«Há nisso arbitrariedade e gosto pela arbitrariedade (...)Não se pode inverter todos os valores? E talvez o bem seja o mal?»59
O espírito joga com a sua própria identidade , sobre tudo o que pensava sobre si , e agora vai procurar descobrir o que é , e que está além do que pensava ser .

Ao sentimento de engano , de pobreza , de ignorância junta-se o sentimento da possibilidade de se ser impostor tendo amor à «verdade».
Quando deixa de haver uma crença absoluta em tudo aquilo em que se acreditava , na exacta medida proporcional à suspeita , cresce a possibilidade de sempre se ter acreditado na «mentira» , na «impostura».
Esta possibilidade quando não esmaga , eleva.
Quando não leva ao desespero , torna-se num «anzol de conhecimento» , sendo denotada por Nietzsche como a doença , da grande saúde , não só devido à solidão decorrente da unicidade da visão , como também devido ao acto de corroer tudo aquilo que trazia segurança. E ao mesmo tempo seduz o olhar.
Este «anzol de conhecimento » abre o espírito para o mundo , na medida em que este se abre para as coisas e para si.
«(...)esse excedente que dá ao espírito livre o perigoso privilégio de poder viver à experiência e se entregar à aventura: o privilégio de mestria do espírito livre!»60

Há como que uma reconciliação , uma vez que o homem estabelece a sua relação com a alteridade através de si , sem mediações de grau variado que são as convenções , os pontos de vista que latejam na civilização.

«Estava fora de si : não há dúvida .Só agora é que ele se vê a si próprio – e que surpresas encontra nisso !»61

Ganhando assim a vida mais valor , uma vez que o espírito sequioso de conhecer encontra em cada pormenor uma aventura , em tudo encontra a riqueza de interpretações , pode-se então dizer que não existe lugar para o pessimismo. Nem para o optimismo , pois que ambos partem do ideal , e Nietzsche mostra que a celebração de vida a que a libertação do espírito conduz , está além de qualquer especulação , porque é só vivendo para si que o valor da vida atinge o valor supremo para o espírito , alimentando aquele impulso para a verdade através da constante descoberta polisémica das coisas , mediante a perspectiva.
No fundo a reconciliação do homem consigo mesmo e com a alteridade.
A questão do valor é denominada pelo autor , como o problema da hierarquia.



O Humano, demasiado humano é o testemunho de uma «grande separação» sofrida por Nietzsche , desconstruindo e destruindo os seus valores , e com uma surpreendente objectividade , analisando alguns pilares da civilização , nas figuras da Metafísica , moral , religião , arte , cultura e estado , sem nunca deixar de ser um hino à humanidade deste homem que quis ser um espírito livre , e foi génio.

«Humano , demasiado humano é o monumento de uma crise . Chama-se «um livro para espíritos livres» : nele , quase cada frase exprime uma vitória – libertei-me com esse livro do que era impróprio na minha natureza. Impróprio é para mim o idealismo : o título diz «onde vós vedes coisas ideais , vejo eu ... o humano – ah !, apenas o demasiado humano!...».62 Pelo que se delimita já o ponto central de reflexão como a figura do «pai» enquanto figura da alteridade .
E que figura é esta do « pai » ?
O pai é o símbolo da autoridade , do valor , do domínio , da posse .
O pai é a figura que mais se relaciona com a emancipação , quer através da «ajuda» que fornece , quer , em lado oposto , em vista da qual ( figura paterna) , essa mesma emancipação opera .
De qualquer modo , a emancipação está sempre relacionada com uma figura de poder , autoritária , quer em força , quer em saber ( no fim de contas o mesmo ) , que é a figura paterna , que em abstracto parece ser contida no inconsciente humano como uma figura desencorajadora dos esforços de emancipação e exercendo uma influência que priva , limita , esteriliza , e esta imagem que subsiste da figura paterna como autoritária será talvez efeito da lembrança persistente de uma permanência remota na dependência . Isto é , porque nos lembramos que em certa altura fomos «menores» , dependentes , «imperfeitos» , subjugados por uma autoridade alheia ao nosso ser , a figura da autoridade personificada no pai adquire tons de totalitarismo , de algo ao qual se reage , algo que desperta o processo de emancipação , mais por reacção que por acção livre e «voluntária» do próprio indivíduo .
O pai representa as forças de um poder instituído , da tradição , do conservador , diante das forças da mudança .
O pai atinge uma grandeza cultural nos mitos sobre as origens , onde a sua simbologia se confunde então com as forças e elementos da natureza , quer sejam o céu , a terra , etc. ...
A simbologia do pai trai o sentimento de uma ausência , de uma falta , de uma perda ou vazio em que só o autor dos dias , como o pai é autor dos filhos , poderia preencher .
Ricoeur atribui a riqueza do símbolo do pai em particular ao seu potencial de transcendência , na medida em que mais que significar um dos elementos ( a par da mãe ) da procriação , simboliza o dador das leis , a fonte do poder da instituição .
Como senhor e o céu , ele é uma imagem de transcendência , ordenada , sábia e justa .
Paradoxalmente , se o pai é algo que queremos superar , é ao mesmo tempo o modelo , o algo em que nos queremos tornar , de quem queremos ter o mesmo valor .
Paradoxalmente ?
Sim , porque se o pai traz consigo o movimento da sua morte e do renascimento do eu , por outro lado está irremediavelmente presente como ponto fundamental desta relação , uma vez que é graças à sua presença que a mudança acontece ... tem assim uma dupla vertente criadora , dá a vida e obriga à emancipação , quer como reacção quer como modelo .
A figura do pai subsiste sempre como uma imagem permanente da transcendência que não se pode aceitar sem problemas a não ser através de um amor recíproco na idade adulta .
Mas esta imagem reporta-se mais a uma figura imanentemente transcendente ( porque corresponde ao simbolismo colectivo da pessoa humana ) que a uma qualquer divindade transcendentemente imanente como é um por exemplo um Deus com um «Filho» , sem mulher de onde o gerar ...
Isto é , a tradução por palavras humanas do fenómeno da criação cristã , planta à partida um paradoxo , que é o de que as palavras antropomorfizam a realidade inumana designando um ser (CRISTO) fruto da génese de um Deus que o concebeu sozinho , mas que para o homem passa por ser filho , inescapável no mundo do ser humano , como resultado da actividade de dois seres .
Porque é que Deus é pai e não mãe ?
Deus está além da razão humana , e no entanto estamos condenados a tentar pensá-lo com as nossa palavras ...
Mas passemos à frente e atentemos no que é a alteridade .
A alteridade é o outro que não o mesmo ?
O outro posso ser eu mesmo quando a minha consciência sobre mim incide .
A alteridade é a condição de um ser distinto de outro no seu modo de ser específico ou no seu facto de ser numérico , isto é na sua essência ou na sua existência .
A alteridade é condição intrínseca a todo o ser pois todo o ser é ao mesmo tempo o mesmo e o outro , sujeito e objecto nas palavras de Feuerbach .
No mito , estabelece-se uma relação entre o homem (profano) e o sagrado .
Quer seja a relação com um herói , ou ídolo de futebol , a relação é sempre entre o homem «comum» e o outro que lhe ocupa os sonhos e o imaginário , e que lhe está interdito ser na vida «real».
O sagrado é tudo o que está vedado proibido , numa ordem de realidades cuja natureza e valor supera a nossa (do homem «comum») ordem de realidades .Comecemos pelo fim e atentemos com a ajuda de Feuerbach , em que consiste e como se dá esta relação entre o mesmo e o outro , quer ele esteja simbolizando a figura paterna ou não .

A relação:

Tudo no ser humano é relacional , quer consigo , quer com os outros , quer com o mundo , quer com Deus .
Tudo no mundo é relação , tudo no mundo interage (até o espaço com o tempo.) , mas no ser humano a unicidade acontece pelo simples facto de que a principal relação humana , ser de natureza afectiva . A afectividade da relação é o modo como a alteridade me afecta . Por exemplo , qual é a diferença entre a presença ao pé de mim de um candeeiro , ou de uma pessoa ? O candeeiro é algo que me é útil , algo que no entanto só me toca se eu necessitar dele , o que no caso da pessoa é diferente , todos nós nunca somos tão indiferentes a uma pessoa (em geral a todos os seres vivos ) como o somos a um candeeiro , e se alguém o é , decerto será portador (a) de uma disfunção emocional de qualquer tipo . Quanto mais a afectividade me afectar , mais forte é o vínculo que me liga a ela , quanto mais saio de mim mesmo , mais amo , quanto mais quero o bem do outro , mais afectado sou por ele , quer quando ele me arranca de mim , quer quando nele me projecto .
Mas desde já um problema se coloca , que é a possibilidade e legitimidade de podermos falar genuinamente da relação humana , e dissertar sobre ela quando : «O que é ,tal como é – portanto , o verdadeiro na sua verdadeira expressão parece superficial ; o que é , expresso tal como não é – portanto , o verdadeiro expresso sem verdade e de modo inverso , parece ser profundo . »63
Entendo por relação a conexão entre duas ou mais coisas , que se chamam termos da relação , sejam eles objectos , pessoas , factos ou acontecimentos .
A relação estabelece um vínculo de união entre os elementos relacionados e possibilita a unidade dentro da multiplicidade .
Entendo por vínculo a modalidade dessa relação , sendo a modalidade tão só o arranjo qualidade/quantidade entre os termos da relação .
Por exemplo , vejamos a relação que tenho com o meu cão.
Eu e ele estamos relacionados , existe uma ligação entre nós , e o vínculo pode ser afectivo , enquanto eu gostar dele e vice-versa , pode ser um vínculo de dependência , enquanto ele precisar de mim para comer , e eu precisar dele para fazer festinhas ou para brincar , pode ser um vínculo de necessidade se eu precisar dele para apanhar ratos , e ele precisar de mim para o levar ao veterinário .
Assim , a relação entre os dois termos permanece , apenas mudando a natureza do vínculo , quer seja um vínculo afectivo , dependente ou utilitário .
O vínculo é tão só a relação entre a qualidade (tipo)/ quantidade (intensidade) , da natureza afectiva da relação . A afectividade da relação é o modo como a alteridade me afecta.
Por exemplo , quanto mais saio de mim mesmo , mais amo , quanto mais quero o bem do outro , mais afectado sou por ele .
Qual é a diferença entre este candeeiro e uma pessoa , para mim ?
Eu sofro com a pessoa.
No artigo «relação» da LOGOS ,a seguinte terminologia é aplicada:
a relação é composta por três elementos :
1)sujeito – como sendo aquilo que se refere ao termo ;
2)termo – como sendo aquilo ao qual o sujeito se refere ;
3)fundamento – como sendo aquilo pelo qual o sujeito se refere ao termo .
Não sei se fará muito sentido discriminar sujeitos e termos das relações , uma vez que apreendemos primeiro , é de facto a alteridade , mas essa apreensão é já a relação estabelecida , pelo que apreendemos primeiro a relação e só depois os «termos» dela .
O sujeito que apreende o que quer que seja , fá-lo através do vínculo original , que é a relação entre um acto de consciência e outro fenómeno qualquer.
E como estamos a falar de Feuerbach , não nos interessa afastarmo-nos do sensível , mas ir até ele .
O âmbito desta exposição é pensar o que é o vínculo sentido pelo sujeito .
De acordo com o que foi dito , parece-me inapropriado designar o terceiro termo da relação , como o fundamento da relação . E digo isto porque se existe relação num plano casual , como o será eu por exemplo , num autocarro olhar outra pessoa e vice-versa , e durante breves momentos uma relação é estabelecida , ( ambos sentimos o olhar de ambos , mas apesar do espanto , da surpresa de alguém olhar para nós , «O mistério da acção recíproca resolve-se apenas na sensibilidade .»64, quando o tu se transforma no eu objectivo ) ,mas não se estabelece nenhum vínculo que seja fundamento desta relação pois ela foi casual , indeterminada , fortuita ( e o ocasional é fundamento de nada ), não foi resultado do impulso de dois sujeitos , um para o outro , isto é , entendo o vínculo como não só passividade , como actividade .
Se contra isto se argumentar que o fundamento da relação no autocarro será o da comunidade ( ambos são passageiros de autocarro e do mesmo autocarro (!)) , e o da reciprocidade (ambos olham o outro ), procede-se a uma argumentação lógica , na medida em que o facto de sermos passageiros no mesmo autocarro não significa que uma relação se estabeleça , tal como olhar para uma pessoa , não o é .
E não é porquê?
Porque como foi dito no início , a relação é a conexão entre duas ou mais coisas .
Nem o facto de trocarmos olhares é fundamento para a relação , uma vez que posso olhar para uma pessoa e não a ver , como acontece quando estou distraído . Acontece uma conexão quando o sujeito toma consciência do outro , se torna ele , isto é , quando o tu se torna o eu objectivo.
O que de certa forma remete para a nota de Feuerbach em que todos somos sujeitos e objectos ao mesmo tempo .

É preciso que eu tenha consciência do outro , e que a sua existência seja notada por mim , para que haja uma conexão , mesmo que não seja recíproca : «Não existo para mim , entregue ao acaso da força da natureza ; outros existem para mim , sou abraçado por um círculo universal , sou membro de um todo.»65
O que se vai tentar mostrar é que quanto mais a alteridade for sentida , mais forte é a relação , e o inescapável facto de existir uma alteridade e um impulso afectivo para ela , desvela a natureza relacional humana.
Assim o fundamento da relação não será a sua modalidade , mas a capacidade de sentir a alteridade . Isto é , a natureza do vínculo é a relação com a alteridade , a modalidade do vínculo é a interacção dos seus atributos qualitativos e quantitativos .O fundamento da relação é a relação , e não o seu predicado.
O mesmo está relacionado com o outro . Como tudo está relacionado , não há fundamento para uma relação , uma vez que as coisas são fundamento de si mesmas.

O que é a consciência ?
«O coração dá-me a consciência de que sou homem , a lei apenas a consciência de que sou nulo , de que sou pecador.»66
A diferença entre homem e animal reside no facto de que o homem possui consciência em sentido estrito , isto é , tem como objecto o seu género , a sua essencialidade , ao passo que o animal possui tudo o resto ( sentimento de si , faculdade de diferenciação do sensível , etc.) .
O homem tem uma vida interior e uma vida exterior .O homem pensa , (fala, conversa ) consigo mesmo ; é ao mesmo tempo para si eu e tu , «(…)pode colocar-se no lugar do outro precisamente porque tem como objecto , não apenas a sua individualidade , mas o seu género , a sua essência .»67
E o que é a humanidade , a essência propriamente dita , no homem ?
A humanidade é composta por razão , vontade e coração , que são as perfeições essenciais humanas absolutas .
Querer , amar e pensar são os fundamentos da existência do homem .
Querer…algo.
Amar…algo.
Pensar …em algo…
O homem é relação . Cada relação é única e o homem toma consciência de si pelo objecto , uma vez que a consciência do objecto é a consciência de si do homem . O objecto é a essência revelada , o meu verdadeiro eu objectivo .
A consciência do objecto , é o testemunho da minha própria essência .
A humanidade do homem , enquanto se manifesta , mostra ao homem aquilo que ele é .
O poder que o objecto tem sobre o homem é o poder da própria essência humana :
)poder do objecto do amar - amor
)poder do objecto da razão – razão
)poder do objecto da vontade – vontade.
«O sentimento é determinado apenas pelo que é pleno de sentimento , isto é , por si mesmo , pela sua própria essência . »68
Independentemente do objecto do qual estamos conscientes , a consciência desse objecto é sempre ao mesmo tempo consciência da nossa essência . »69
Quem trabalha a terra é camponês . Quem caça é caçador . Quem pesca é pescador.
A alteridade constrói a nossa mesmidade .
Com a alteridade não só me afirmo a mim mesmo , como me reconheço duplamente , como limitado enquanto indivíduo (quando comparado com o género ) , ilimitado enquanto género .
O outro complementa-me .

«Mas quando o homem já nada tem fora de si , então busca e encontra tudo em si , põe no lugar do mundo real o mundo imaginário e inteligível no qual se encontra tudo o que existe no mundo real , mas no modo de representação abstracta.»70

«Até onde vês , até aí se estende a tua essência e inversamente . »71
Consciência e ser não se podem separar . Primeiro somos , depois temos consciência do que somos . Na actividade dos sentidos permito que o objecto seja o que eu próprio sou , um ser real que se manifesta , «Só os sentidos e a intuição é que me proporcionam algo como sujeito.»

O fenómeno:
O género em Feuerbach , significa o tu em oposição ao eu , tudo o que não sou , sendo também , o humano individual existindo fora de mim . Os limites deste indivíduo não são os mesmos de outro .
Na nossa mesmidade , somos também eternas comparações com o que somos , fomos , podíamos ser , em relação a nós , em relação com os outros .
O eu é dependente do tu , sem tu não há eu .
Estamos perante a apologia da diferença e da semelhança , pois «Só seres de igual valor são objecto uns para os outros e , sem dúvida , tais como são em si.»72 , superada pela complementaridade que os termos possuem entre
si , isto é , não contrários , mas complementos (por exemplo : homem / mulher , doente / médico , pai / filho).
Diferença e semelhança ontológica e gnoseológica.
Só a existência no espaço e no tempo é existência , o ser dá-se em espaços diferentes , o pensar em tempos diferentes ,e a subjectividade que enquanto origem e movimento é a objectividade da Filosofia.
Existe algo fora de mim porque vejo , ouço , sinto alguma coisa.
Este algo , «(…)este alguma coisa só é algo de real , um objecto real enquanto objecto da consciência – por conseguinte , a consciência é a absoluta realidade ou efectividade , a medida de toda a existência . Tudo o que existe só existe como existente para a consciência , como consciente ; com efeito o ser é primeiramente consciência .»73
Formula-se aqui uma filosofia da identidade , pois os objectos do entendimento , as coisas pensadas , enquanto verdadeiras são as coisas reais , onde a essência e a constituição do objecto do entendimento corresponde à essência e à constituição do entendimento do sujeito. Assim o sujeito já não é mais limitado e condicionado por uma matéria que existe fora dele e contradiz a sua essência , não é um eu que se contrapõe a um objecto , é o eu sem limites . O que existe no meu pensar , existe só para mim , o que existe no ser tem dimensão universal , existe para mim e para outros . O ser fora do meu pensamento é a verdade porque é a objectividade acessível a outros , «(…)só existe o que é ao mesmo tempo para mim e para o outro (…)»74.
O que significa tudo isto? Significa que Feuerbach alerta contra o empobrecimento e ilusão mesquinha , o tomarmos as representações que temos uns dos outros como se fossem o verdadeiro ser , substituindo-o.
O que é o ser ?
O ser é a minha representação , mais as qualidades essenciais das coisas .
O ser é na sua natureza sensível , pois é assim que se dá e o seu valor está encerrado dentro de si .
Mas o erro está em tomar a representação pela coisa em si , pois
«O pensar nega tudo , mas apenas para tudo pôr em si . Já não tem fronteira alguma em algo fora de si , mas por isso mesmo sai for a da sua fronteira imanente e natural .»75
O pensamento só se realiza , fazendo-se objecto dos sentidos . Toda a realidade é provida de idêntico valor ontológico.
O ser não espera o nosso pensar nem a nossa linguagem .
















Ludwig Feuerbach ,Princípios da Filosofia do Futuro ,tradução de Artur Morão ,Lisboa ,Edições 70 ,1988 ,p.75
A paternidade da alteridade

De onde surge então esta ligação ao transcendente ?

Faz parte da natureza humana ter aspirações e fantasiar .
O que leva o ser humano a encarnar a figura do seu pai nas forças da natureza e nas suas divindades ? Que movimento psicológico é este em que na genealogia da sua mundividência o criador de mitos conta a história de Úrano , Rá , Odin , Kamui , os dois Ungambikula , Ahura Mazda , Kumush , Ulgan , princípios das coisas , ( especialmente dos homens ), entidades que assumem a autoridade própria da figura paterna assim que constituem a humanidade . Aquilo que cria o homem , é o pai da humanidade e lembra a esta que foi criada , que se submete a algo .
Vários outros mitos , mesmo que não englobem em si esta relação «paternal » , apenas nos apresentam realidades humanas a uma escala cósmica , pois se de outro modo não fosse , como poderíamos compreender a criação se ela não se manifestasse através de um fenómeno qualquer já experienciado por nós ? Por exemplo como acreditar num deus que cria o homem a partir das gotas do seu suor , quando nunca se suou ?
A paternidade , enquanto origem , da alteridade provém então da aspiração humana de compreender os mistérios da criação e da vida , e na necessidade camuflada de na sua existência ter o amparo , a companhia de um ser que lhe quer bem , zeloso , garante não só de crenças , como de sanidade mental , na solidão silenciosa do mundo .
Explica-se assim , como podemos encarar a paternidade da alteridade em vários mitos ... A antropomorfização necessária operada pelo ser humano em tudo aquilo que o rodeia , tem a dupla vertente de fazer procurar a transcendência no mundo , e de construi-la de acordo com as suas realidades , mesmo as mais banais .
O impulso para a relação é o momento inicial , e a tentativa de compreensão , posteriormente , forjam o ambiente ideal para que no mito se assista à construção de fábulas que se aplicam aos fenómenos naturais , num edifício que cada vez se torna mais longo mediante a imaginação fértil do fabulista , mas ... em todas as fábulas algo de primordial pode ser denotado como denominador comum ... se o homem explica e se relaciona com o mundo e com outras realidades a partir da sua própria realidade , outra realidade que é a relação pai - filho , está presente em quase todos os mitos da cultura humana , e isto porquê ?
Talvez porque como realidade mais próxima da criação , e devido ao seu peso na alma humana , a figura do pai é a mais geral e refinada personificação desta procura pelo sentido da vida que do fim ( o sentido da vida ) parte para o princípio , o pai , o progenitor , aquele que dá a vida .


O homem é um criador , onomaturgo , demiurgo , por fim , todos eles ... fabulista .
O homem tem um impulso para a formação de metáforas , uma irresistível atracção pelo mundo , e quanto mais criador é o homem , mais rico e exuberante é o mundo , tomado a seus olhos , de fabulista ...torna-se a vida mais preciosa .
«Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo se mantêm um ao lado do outro , um por medo da intuição , o outro desdenhando a abstracção ; e o último é quase tão irracional como o primeiro é insensível à arte . Ambos desejam dominar a vida (...) » 76.







A alteridade da paternidade

Em que consiste esta paternidade ?
Como pode ela ser alteridade ?
Já vimos como funciona a figura do pai , enquanto percutor do nascimento e do renascimento (emancipação) .
Será que a alteridade que atribuímos ao pai é realmente uma alteridade ? Ou apenas construímos histórias a partir do fascínio que a figura paterna em nós exerce ?
Casos existem , conhecidos e estudados , em que por exemplo , raptores adquirem aos olhos das vítimas , o papel de protectores , de alguém que numa situação extrema , perde o fulgor da violência que pratica , para tomar as cores de um ser que autoritário , com força , com poder de decisão sobre vida ou morte , é «admirado» e até de certo modo compreendido , pelas pessoas dele reféns , mercê dessa distância e autoridade .
Esse fascínio , não pode ser um sinal de menoridade , pois a admiração não é um sinal de menoridade . O facto de se revelar em situações de intensidade como a acima descrita , mostra que cada vez mais se perde a capacidade de espanto , e que o real atinge raquíticas proporções nos tempos hodiernos e mostra também que a capacidade de nos admirarmos fica latente , sendo talvez constitutiva da natureza humana .

Nietzsche

Nietzsche trata bem este mecanismo psicológico .
Da observação que algo gera o seu contrário , observação vulgar com tom de banalidade , como por exemplo , o facto de por vezes o amor surgir do ódio e vice-versa , «(...)o racional do irracional , o sensível do inânime , a contemplação desinteressada do ávido querer , a vida consagrada a outros do egoísmo , a verdade dos erros ?»77 , surge uma suspeita que vai ser denotada por Nietzsche como a que conduz à «grande separação» , que acontece no seio do espírito comprometido , e que atenta contra a Metafísica dogmática e a Moral .Cisão dolorosa na medida em que a certa altura se propaga a tudo em que o espírito acredita , podendo conduzir a uma «provável vitória do cepticismo».

Esta suspeita em relação a tudo o que é mais «forte», «sagrado» , permite uma abertura polisémica que a dúvida não possui , e consequentemente torna mais perturbador este acto a quem suspeita ... «De onde , com os diabos , vem nesta constelação o impulso da verdade?»78, e neste movimento de suspeição , a procura da origem , com a inversão dos sentimentos e conceitos (no pôr em causa a própria «medida» de avaliação) vai inaugurar uma nova atitude que assenta na compreensão da transmutação dos sentimentos morais , como um processo natural que faz parte da história das culturas , arredando de vez a noção de contrários irremediáveis e irreconciliáveis , que eram os alicerces do «outro mundo» em que se baseava a metafísica dogmática.
Este é o primeiro passo para a morte do pai , para a morte de Deus .
«Mas a nossa filosofia não se torna assim em tragédia? A verdade não se torna hostil à vida , ao melhor?(...)se se pode permanecer conscientemente na inverdade?(...)Se assim é , restaria uma única maneira de pensar , que acarretaria como resultado pessoal o desespero , como resultado teórico uma filosofia da destruição?»79






A grande separação:

Ao descobrir o carácter demasiadamente humano da moral , o espírito outrora acorrentado ao dever e ao respeito , à reverência , dedica-se agora a desconstruir tudo aquilo em que acreditava.
Esforço imenso , para o qual é preciso coragem , resistência ao isolamento ... pois quem suspeita , desconfia e procura sempre algo atrás do véu , faz algo que só se pode fazer estando só , pelo facto de ser muito pessoal.
«(...)ciumentos da solidão , da nossa própria e profunda solidão , nocturna e diurna ; - eis o tipo de homens que nós somos , nós , espíritos livres !»80.

Esta suspeita em relação ao mundo , esta viagem em terra inóspita , faz com que o espírito que se quer libertar , tenha necessidade de se «agarrar» a algo para não sucumbir perante o nada. Porque o homem necessita de orientar a sua conduta no seio dos homens , e «(...)porque não é possível que os indivíduos e as sociedades se desfaçam daquilo que é essencial à sua preservação.»81.
Apesar de Nietzsche criticar a moral , não a abandona. O exame que faz clarifica e coloca o ponto fundamental na celebração da vida que o conceito esfriara , e fá-lo através do tópico da autodeterminação do espírito livre , retirando de certo modo , o estatuto «alienado» ou descentrado em que a moral tinha feito cair o homem em relação à sua vida.
«Tu devias tornar-te senhor de ti próprio , senhor também das tuas próprias virtudes.»82

Em relação a esta autodeterminação Nietzsche mostra como ele próprio fez quando voou nas gélidas alturas , inventando a partir de si mesmo os espíritos livres , ídolos que o acompanham no vazio (pois no vazio fica o homem quando as suas crenças estão em obras ) , e ídolos que são exemplos que fazem com que não se sinta só na sua missão , ao mesmo tempo que o fazem maior , quando se tenta auto-superar.
Os espíritos livres que inventou foram muletas que lhe permitiram saltar mais alto.
Eis que estes espíritos livres permitiram ao camelo tornar-se leão e ajudaram na travessia do deserto , até que a criança comece a estabelecer os seus valores.
Este espírito era camelo , espírito comprometido , comprometido com : « (...)aquele respeito , como convém à juventude , aquela timidez e delicadeza perante tudo o que é venerado desde há muito e digno , aquela gratidão pela terra em que cresceram , pela mão que os conduziu , pelo santuário em que aprenderam a adorar(...)»83.

Nietzsche tem consciência do seu pioneirismo , e é por isso que «arranca» de si mesmo aquilo de que necessitava para manter a sua verdade.
Mas «Esta primeira erupção de energia e vontade de autodeterminação , de autodefinição dos valores , esta vontade de ter uma vontade livre é , ao mesmo tempo, uma doença , que pode destruir o homem.»84.

Nietzsche criou para si os espíritos livres .
Apontou o caminho pelo qual os viu nascer.
Espíritos nados na suspeita , e que através dela retiram a natureza polisémica do mundo , e vivem com alegria esta liberdade , e que , longe de desesperar , celebram a vida «(...)em cujos degraus nos sentámos e pelos quais subimos , os quais , em dada altura , fomos nós próprios!»85.
«Já os vejo vir , devagar , devagar , e talvez faça alguma coisa para apressar a sua vinda , se , de antemão , descrever com que destinos eu os vejo nascer , por que caminhos eu os vejo chegar?»86

Em suma , um espírito sofre uma grande separação quando aquilo em que mais acreditava , perde força devido à suspeita que a dado momento se infiltra no seu modo de ver as coisas. Tudo aquilo que julgava ser , tudo aquilo que era incontestável e no qual se apoiava para viver , para compreender , de repente é colocado em causa , e como que o espírito se espanta e se envergonha. Espanto pela riqueza de sentidos e por algo a que o seu orgulho não responde que é a grandeza do mundo , vergonha por ter estado tanto tempo «ludibriado» convicto de que era no sítio em que escavava que estava o tesouro . Devo confessar que sendo um momento psicológico muito importante , não é para mim , de fácil expressão , quando quero ir além de uma paráfrase de Nietzsche.
Contudo o sentido mais forte desta separação é o facto de existir um espírito na actividade de se examinar e a tudo aquilo em que acreditava , num processo moroso de dissecação que não é fácil a quem quer descobrir a «verdade».






O retorno a si :

O que é um espírito livre? - «(...)um espírito que se tornou livre e que voltou a tomar posse de si mesmo.»87
É um espírito que através da suspeita em relação às coisas do mundo , ao mundo , se vira para si mesmo e se estuda , desconstruindo , destruindo quando necessário , tudo aquilo em que acreditava , e uma vez solto das cordas do dever e do respeito constrói através de si próprio aquilo que será digno da sua crença.

O espírito livre como operador da suspeita , tudo coloca em causa , o conhecimento , a moral , até (e especialmente ) a si mesmo .
Como tudo , o espírito livre é fruto de uma evolução .
Qualquer espírito tem crenças , convicções , as quais toma como algo de imutável , sagrado e intocável , ou seja , tudo aquilo que o espírito considera digno de valor e pelo qual se norteia.
Num certo momento , instala-se a desconfiança quando se observa que por vezes algo surge do seu contrário . Este espírito quer por «medo» de ter sido vítima de um logro , quer por espanto perante o seu engano no seu acto de crença , quer por espanto por as coisas serem como são , quer por curiosidade por um mundo novo que pressente por detrás do véu , passa a respirar suspeita em cada movimento da sua atenção.
Desta vergonha , desta emancipação , facilmente se passa do momento passivo onde toda a crença anterior é colocada em xeque , à movimentação rebelde contra tudo aquilo pelo qual o espírito anteriormente se norteara , acreditara . Como que um prazer na inversão , um ressentimento , uma raiva (um abuso de força como prova de força?) que transforma o espírito em espírito «rebelde» contra tudo o que julga pertencer à ordem anterior.
«Há nisso arbitrariedade e gosto pela arbitrariedade (...)Não se pode inverter todos os valores? E talvez o bem seja o mal?»88
O espírito joga com a sua própria identidade , sobre tudo o que pensava sobre si , e agora vai procurar descobrir o que é , e que está além do que pensava ser .

Ao sentimento de engano , de pobreza , de ignorância junta-se o sentimento da possibilidade de se ser impostor tendo amor à «verdade».
Quando deixa de haver uma crença absoluta em tudo aquilo em que se acreditava , na exacta medida proporcional à suspeita , cresce a possibilidade de sempre se ter acreditado na «mentira» , na «impostura».
Esta possibilidade quando não esmaga , eleva.
Quando não leva ao desespero , torna-se num «anzol de conhecimento» , sendo denotada por Nietzsche como a doença , da grande saúde , não só devido à solidão decorrente da unicidade da visão , como também devido ao acto de corroer tudo aquilo que trazia segurança. E ao mesmo tempo seduz o olhar.
Este «anzol de conhecimento » abre o espírito para o mundo , na medida em que este se abre para as coisas e para si.
«(...)esse excedente que dá ao espírito livre o perigoso privilégio de poder viver à experiência e se entregar à aventura: o privilégio de mestria do espírito livre!»89

Há como que uma reconciliação , uma vez que o homem estabelece a sua relação com a alteridade através de si , sem mediações de grau variado que são as convenções , os pontos de vista que latejam na civilização.

«Estava fora de si : não há dúvida .Só agora é que ele se vê a si próprio – e que surpresas encontra nisso !»90

Ganhando assim a vida mais valor , uma vez que o espírito sequioso de conhecer encontra em cada pormenor uma aventura , em tudo encontra a riqueza de interpretações , pode-se então dizer que não existe lugar para o pessimismo. Nem para o optimismo , pois que ambos partem do ideal , e Nietzsche mostra que a celebração de vida a que a libertação do espírito conduz , está além de qualquer especulação , porque é só vivendo para si que o valor da vida atinge o valor supremo para o espírito , alimentando aquele impulso para a verdade através da constante descoberta polisémica das coisas , mediante a perspectiva.
No fundo a reconciliação do homem consigo mesmo e com a alteridade.
A questão do valor é denominada pelo autor , como o problema da hierarquia.
«Humano , demasiado humano é o monumento de uma crise . Chama-se «um livro para espíritos livres» : nele , quase cada frase exprime uma vitória – libertei-me com esse livro do que era impróprio na minha natureza. Impróprio é para mim o idealismo : o título diz «onde vós vedes coisas ideais , vejo eu ... o humano – ah !, apenas o demasiado humano!...».91






A paternidade da alteridade e a alteridade da paternidade ( conclusão ) :

Tentou-se analisar um mecanismo psicológico que opera no ser humano , aplicado ao mito , à ligação religiosa .
Analisou-se a figura do pai , e o modo como ela influencia , inclusive em termos freudianos , a nossa relação com a alteridade na figura paterna .
Deu-se também a tentativa de aclaramento da noção de alteridade .
Definiu –se o que se entendia por relação , para que na junção de todos estes elementos se pudesse reflectir e compreender certas personagens e figuras presentes na maior parte dos mitos , provenientes de todo o mundo .
Analisada a simbologia , o acto relacional , analisou-se o porquê desta relação nos seus dois termos , e chegou-se à ideia de que , a paternidade da alteridade provém sobretudo da constituição da natureza humana , e também de factores sociais , e que a alteridade da paternidade segue o caminho inverso , sendo predominantemente social , isto é , aprendida , e que desconstruidas estas aprendizagens , se encontra a mesma componente relacional constitutiva do ser humano .
À luz disto tentou-se enquadrar o complexo de Édipo freudiano , aplicado ao sagrado , ao mito , à fábula .

A escolha do movimento espiritual descrito por Nietzsche , embora por factores óbvios , é fruto da identificação feita pelo autor do trabalho entre a ruptura e a tentativa de emancipação .






Bibliografia principal :

- Feuerbach L. ,Princípios da Filosofia do Futuro ,tradução de Artur Morão ,Lisboa ,Edições 70 ,1988

- Feuerbach L.,«A Essência do Cristianismo» , trad. Adriana Serrão , FCGulbenkian , Lisboa , 1994


- Nietzsche F., Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral , trad. Ana Lobo , Porto , , Rés Editora


-Nietzsche ,F., Humano , demasiado humano , trad. Paulo Osório de Castro , Círculo de Leitores , 1996




-Freud , S., Moisés e o monoteísmo ,trad. Isabel de Almeida e Sousa , Relógio de Água , Lisboa