Tuesday, July 15, 2008

Hegel – Prefácio da Fenomenologia do Espírito

O absoluto é sujeito



Hegel propõe, em concordância com o seu sistema, que tomemos um ponto de vista em que a apreensão e a expressão do verdadeiro sejam feitas tomando este, não como mera substância, mas também, e fundamentalmente, como sujeito.
O absoluto verdadeiro, na História, no desenvolvimento da razão, não é apenas paciente, como é agente, e tem identidade, que se revela com ele.
O verdadeiro é substância, e não só. É substância pois contém em si o «universal ou a imediatez do saber» e o que é ser ou imediatez para o saber, ou seja, o verdadeiro é resultado e processo, da sua própria actividade.
O verdadeiro não é só substância no sentido do latim substantia (verbo substare), que significa estar debaixo de...). O verdadeiro é também subjectum, sujeito na medida em que sustenta os acidentes.
Há aqui um jogo de palavras em que Hegel joga com a etimologia de substância e de sujeito, reconduzindo ambos a uma esfera anterior, fundante, mas concedendo ao sujeito a parte motora, activa, ou seja, o que Hegel nos diz é que não devemos encarar a substância como coisa passiva sem qualquer carácter activo e dinâmico, mas ver que a sua própria manifestação ou aparição é actividade própria de um sujeito que se manifesta, que age, que apreende e exprime, que é exprimido e apreendido.
Hegel aponta as três posições contemporâneas fundantes relativamente à noção de substância:
a de Espinosa, que por ser desprovida de um princípio de personalidade não pode ser assumida como sujeito, adoptando um papel claramente passivo, e consequentemente não pode ser espírito devido à sua rigidez e imutabilidade, o que não passa de uma cristalização...
as de Kant e Fichte, que ao tomarem a substância como o «pensar do pensar», cristalizam também a substância e a filosofia ao reduzirem-nas a um formalismo lógico e vazio;
E por fim, Schelling, que concebe a substância como unidade do pensar e do ser, que eclode independentemente da posição do sujeito e do objecto, e essa identidade, como cópula, está num campo diferente, misturam-se as esferas de sujeito e objecto. Mas mesmo esta posição de Schelling é uma posição absoluta, e talvez seja, nas palavras de Hegel, «simplicidade inerte».
A verdadeira substância é um ser que é verdadeiramente sujeito, isto é, que é apenas ele mesmo na medida em que se aliena ele mesmo de si mesmo, e pode depois posicionar-se ele mesmo em e através daquilo que alienou ou é estranho.
Deste modo é substância viva, porque é um ser que é na verdade, sujeito efectivo e sujeito, e efectivo, e porque «somente na medida em que ela é o movimento do pôr-se a si mesma ou a mediação do tornar-se outra consigo mesma.»
Enquanto sujeito, a substância viva é pura, é simples negatividade, e isto significa uma cisão do simples, uma duplicação oponente, e a negação desta diversidade indiferente e do seu oposto.
O verdadeiro é esta igualdade que se restaura, é a reflexão em si mesma no ser-outro, não é uma unidade originária como tal, ou uma unidade imediata como tal.


«O verdadeiro é o devir de si mesmo, o círculo que pressupõe e tem como começo o seu fim como sua finalidade, e que só é efectivo mediante o desenvolvimento e o seu fim.»
A substância torna-se outra consigo mesma, porque é sujeito. Ao ser sujeito, posiciona-se, e ao posicionar-se está a mediar-se a si mesma, sai «fora de si», para decidir a sua posição. Media-se a si mesma.
Para se posicionar, tem de ter um referente, uma fronteira, a partir da qual se posicione. Essa fronteira, o objecto, sendo referente, faz com que a substância viva seja simples negatividade porque se posiciona em relação a esse objecto.
A substância viva é ao mesmo tempo, posição e posicionamento, ou seja, positividade e negatividade, em que existe um devir entre o em si e o para si da substância. Neste fluxo e refluxo, o verdadeiro é o processo, não um processo vazio de tipo eterno-retorno, mas de superação, mantendo sempre o que é superado.
Não um formalismo vazio de pescadinha com rabo na boca, mas um contínuo movimento de ascenção, sendo que esta ascenção é um movimento para a plenitude, uma vez que nada deita fora no decurso de todo o processo.
Este devir é que é o verdadeiro,«o verdadeiro é o devir de si mesmo».
Neste círculo de círculos que só pode ser uma espiral ascendente, é que o «o círculo que pressupõe e tem como começo o seu fim como sua finalidade, e que só é efectivo mediante o desenvolvimento e o seu fim.»
Este devir não é um mero ciclo. Não pode ser encarado como tal, se nesse acto, esquecemos a tensão que se traduz em seriedade, dor, angústia, paciência e trabalho do negativo.
Só há evolução ou devir, com a transição, com a necessidade de transição entre estados. Com o movimento para o outro, pela necessidade de mudança. Encarar este devir como um mero círculo vicioso é esquecer a luta constante, a necessidade permanente e imanente da superação.
O próprio amor é o movimento para. É origem de movimento. Sem ele, a substância não seria sujeito, seria uma «igualdade imperturbada e unidade consigo mesma», desligada de si mesma, ou seja, alienada, por não ser outro para si. Ou seja, passando a expressão, puro cristal. Cristalizado. Como pode algo estar alienado, sem movimento? A alienação só é superada com o ser-outro, o tomar-se a si mesmo como «objecto» de pensamento.
Sem movimento, sem pensamento de si, a substância (que na realidade é sujeito) está na mais profunda alienação, pois não tem o seu ser em si, nem tem sequer, ser.
Este em si, é uma abstracção, e estamos com ele a considerar algo sem atender ao seu devir.
«Este em si, porém, é a universalidade abstracta na qual se prescinde da sua natureza de ser para si, e portanto em geral, do automovimento da forma.»
A essência da substância não é este movimento do em si / para si. Este vaivém é uma forma. A essência carece do «automovimento da forma», que é elemento diferenciador.
A forma não se esgota na essência, porque a essência é a identidade pensada em abstracto, ou seja, o em si sem o seu processo gravado na história, sem a superação com a manutenção do superado. Só a forma diferencia e determina, pois contém o elemento agónico, isto é, a tensão, e o processo de superação contendo o superado.
«Justamente porque a forma é tão essencial à essência como esta o é a si mesma, não deve apreendê-la nem exprimi-la meramente como essência, ou seja, como substância imediata ou como pura intuição de si do divino, mas também como forma e em toda a riqueza da forma desenvolvida; só deste modo se aprende e exprime como [o] real de facto.»
O verdadeiro absoluto só pode ser visto como o todo de um acto/processo de auto-realização.
«O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se cumpre através da sua evolução. Há que dizer do absoluto que ele é essencialmente resultado, que unicamente no fim é aquilo que na verdade é; e precisamente nisto consiste a sua natureza de ser efectivo, sujeito ou devir de si mesmo.»
Como já tínhamos visto anteriormente, o absoluto verdadeiro, na História, não é apenas paciente, como também é agente, e fundamentalmente, sujeito. «O verdadeiro é o devir de si mesmo, o círculo que pressupõe e tem como começo o seu fim como sua finalidade, e que só é efectivo mediante o desenvolvimento e o seu fim.»
Mas como é que o absoluto, que aparentemente é a soma de tudo, a totalidade, é essencialmente um resultado? Só em si é que podemos conotar a essência como a soma das partes, a totalidade. Entendido deste modo, o absoluto é abstracto, é positivo, porque é conseguido por uma soma contínua das coisas. Deste modo o absoluto é um formalismo vazio. Deste modo, o absoluto não exprime o que nele está contido.
«O começo, o princípio ou o absoluto, como ele se exprime inicial e imediatamente, é apenas o universal.»
O absoluto «(...) é mais do que uma semelhante palavra (...) é um tornar-se outro que tem de ser retomado, é uma mediação.»
O que nos choca, muito, é dizer do absoluto, que ele é uma mediação. Equivale isto a dizer que tudo é mudança? Como podemos nós pensar o absoluto como um absoluto devir? A mudança nunca é arbitrária. Porque a razão da mudança é a essência da própria mudança.
Hegel diz que este pensamento nos horroriza. «É esta, porém, aquilo que nos horroriza, como se, desse modo, ao fazer-se dela apenas, isto, que ela não é nada de absoluto nem no absoluto, se abandonasse o conhecimento absoluto.»
O que é então a mediação?
Hegel diz-nos que este horror que temos ao encarar o absoluto como mediação, procede de um desconhecimento da nossa parte acerca do que seja a mediação.
«(...) a mediação não é outra coisa senão a igualdade consigo mesma que se move, ou é a reflexão em si mesma, o momento do eu que é para si, a pura negatividade ou o simples devir.»

A apreensão das coisas no momento, o imediato é «a imediatez em devir e o imediato mesmo.»
Mas a cada posição de um objecto, um sujeito a ele se opõe, pelo que «é um desconhecimento da razão quando a reflexão é excluída do verdadeiro e não é apreendida como momento positivo (sujeito – afirma / objecto – nega) do absoluto.» É nesta afirmação/negação que se dá a mediação que suprime/supera esta oposição ao seu devir. O verdadeiro é o todo. O todo revela-se, manifesta-se, pois é também sujeito. Apreende-se a si mesmo através de algo outro que também é ele mesmo. Neste movimento de saída de si e de retorno a si, mas já enriquecido, podemos dizer que «Este devir é igualmente simples e, por isso, não difere da forma do verdadeiro [que consiste em] mostrar-se como simples no resultado; ele é antes, precisamente, este ser regressado à simplicidade.-»
Ao focar o homem como exemplo, temos a clara noção de que o carácter activo que se revela na práxis, na acção é elemento primordial em qualquer diferenciação, ao mesmo tempo que serve de testemunha a um processo maior de reconhecimento e criação. O homem faz-se a si mesmo, como substância é e se faz sujeito, o mesmo que realidade efectiva, revelando-se aqui a realidade como uma mediação auto-criadora, na qual agora podemos tomar como absoluto.
«Este resultado, porém, é ele próprio simples imediatez, pois é a liberdade consciente de si, que em si mesma repousa e que não pôs de lado a oposição e a abandona aí, mas se reconciliou com ela.»
A substância faz-se sujeito. Cria-se. Tal como o homem se cria a si mesmo.
Como? Pela razão, e a razão é o agir conforme a um fim».
Existe um fim nas coisas, e esse fim é racional. E porque o fim é intrínseco, é extrínseco ao mesmo tempo.
O fim é o móbil da coisa, é pura negatividade que faz mover em direcção a. Enquanto força de movimento, é abstracto, e é ser-para-si, incidindo sobre si mesmo, na altura em que se manifesta. (Se eu tenho vontade, mas não sei de quê, tenho vontade e consciência de a Ter.)
O fim é imediato e mediato, pois cada coisa é o seu próprio fim, sem deixar de Ter o movimento para fora de si e de retorno a si.
«O resultado só é o mesmo que o começo porque o começo é fim – ou o efectivo é o mesmo que o seu conceito somente porque o imediato como fim tem nele o si mesmo ou a pura realidade efectiva.»
Só um sujeito pode Ter um fim, só um sujeito tem vontade e movimento, pelo que ao ser sujeito, a substância é realidade efectiva, e quer o mediato que revela uma vontade, quer o imediato que revela um interesse, exprimem esta realidade efectiva que é a do sujeito. Este fim, este movimento, ao acontecer, revela-se, « O fim desenvolvido ou o efectivo que é –aí é o movimento e o devir desenrolado(...)»
Esta necessidade de movimento, esta «inquietação» nas palavras de Hegel, é o si mesmo, que está no início, antes da alteração, e já é resultado, pois é necessidade de outra coisa qualquer.
Esta passagem que a seguir citamos, é de uma beleza deslumbrante:
«O fim desenvolvido ou o efectivo que é-aí é o movimento e o devir desenrolado; esta inquietação, porém, é justamente o si mesmo; é igual àquela imediatez e simplicidade do começo porque é o resultado, o regressado em si mesmo;-mas o regressado em si mesmo é precisamente o si mesmo, e o si mesmo é a simplicidade e a igualdade que se refere a si.»
Falamos em Deus, em absoluto, etc., mas o que são esses sujeitos de que falamos?
São meros sujeitos formais, dos quais dizemos alguma coisa?
A actividade, o devir de si mesmo, que é o verdadeiro, «Em tais proposições (...) está só posto directamente como sujeito, mas não se apresenta como o movimento do reflectir-se em si mesmo.»
Sujeito, é aquilo de que se diz alguma coisa. Sem o predicado, permanece indeterminado, vazio, abstracto. A uma maior predicação corresponde uma maior concreção, ou seja, relativamente ao sujeito «(...) só o predicado diz o que ele é, é o seu preenchimento e a sua significação; o começo vazio torna-se um saber efectivo unicamente neste fim.»
O real é racional, e o racional é real, pois só através do tratamento da razão o real se torna efectivo, concreto, mais rico além das impressões do imediato. O que se denota então quando se diz «eterno», «ordem moral do mundo», «ser», «uno», etc.?
Denota-se, põe-se não um ser ou essência, ou um universal em geral, «mas um reflectido em si, sujeito.»
Digo «Deus», digo que é, mas não digo o que é, pois não o predico.
Ao dizer «Deus», contudo, posiciono-o e posiciono-me a mim. Confiro-lhe e a mim existência, a ele porque tem a unidade suficiente para lhe dar identidade (reflectido em si), a mim porque o afirmo.
Tomamos aqui o sujeito como um saco de plástico vazio que vamos enchendo de predicados.
Nós que o enchemos de predicados, sabemos de sua existência, e somos nós que o predicamos. Esta nossa acção de predicação faz parte do sujeito?
Sem esta nossa acção, o sujeito não estaria sujeito à nossa predicação, ou seja, não seria. Assim a essência de Deus seria inessencial, pois seria um acto nosso.
Este movimento não pode pertencer ao sujeito, sob pena deste Ter uma essência não em si, mas se encararmos o sujeito como ponto referente ao predicado, é esta a consequência necessária.
Ser sujeito, não é o predicado essencial do absoluto. Pois desta forma, o sujeito seria coisa passiva à espera dos predicados, quando ele próprio é auto-movimento.
Parece que as divisões habituais entre sujeito e objecto, não se conseguem aplicar-se à problemática abordada aqui.
Se ser sujeito não é a realidade efectiva do absoluto, qual é ?
A consequência da exposição anterior, é esta, «que o saber só como ciência ou como sistema é efectivo e pode ser apresentado(...)»
Um princípio é já um fim, por exemplo, se dizemos que o princípio será o cogito, esse princípio é já resultado de alguma coisa, não cai do céu.
«(...)uma assim designada proposição fundamental ou princípio da filosofia, se é verdadeiro, é já também falso, porque é proposição fundamental ou princípio.»
Todo o começo é arbitrário, mas começar com um princípio, é um principiar deficiente, porque esse princípio será sempre o universal, e princípio, só porque é começo.
Começar pelo começo só porque é começo, mostra que a refutação do começo é o seu desenvolvimento, e quanto maior o desenvolvimento, maior a refutação, pois o desenvolvimento seria a negatividade do começo, o outro do começo. O resultado enquanto dado, enquanto de certa forma cristalizado, será então positivo. Mas positivo em relação a quê? Ao início?
Mas no começo já está contido o fim, embora não realizado pelo que seria negativo em relação ao começo. Tal como a bolota tem em si o carvalho, mas ainda não o é. Em relação à bolota, o carvalho é o mesmo que é outro.
Assim, o começo e o resultado. Qualquer começo é refutado, enquanto fundamento.
Fundar é afundar, como afirma Hegel, na A Ciência da Lógica.
Deste modo a mais alta definição do absoluto que é sujeito, é o espírito. Só o espiritual é efectivo, só na nossa consciência, conhecimento do Espírito, é o Espírito para si. O nosso avançar no espírito, é o movimento de autoconstrução do Espírito, numa autoreflexão, entre dois elementos unos, nós e o Espírito.
E isto é a ciência...A autoconsciência do Espírito.
«O puro auto-reconhecer-se no ser-outro absoluto, este éter como tal, é o fundamento e o terreno da ciência ou o saber em geral.»
Segundo Hegel, o começo da filosofia tem de ser feito a partir deste ponto.
É necessário que a consciência se encontre neste elemento, no reino do Espírito, no Espírito, que encontra a sua mais pura expressão, no seu devir.
A imediatez do espírito é a reflexão, a essência do espírito é a reflexão, e é uma «essencialidade transfigurada» porque sofreu o processo de ir ás coisas e a si voltar.
Como podemos nós chegar a este patamar?
Temos de ir às coisas, ao outro, para a nós regressarmos. Mas como pode a ciência, que reside em certo nível, dar-nos a escada para a ela chegar-mos?
E este ir ao outro, não é uma perda de si por parte da consciência?
A ciência em si mesma é o inverso da consciência de si mediata. Mas o espírito é esta superação e conservação de opostos.
Temos de partir do mais elementar, que conservamos até ao «fim» do trajecto.
Temos de ir às coisas, elas ficam a fazer parte daquilo que se aproxima como resultado. Através de uma via sacra científica, um longo percurso, como diz Hegel.

Bibliografia:

- Hegel, G., Prefácio da Fenomenologia do Espírito, in Prefácios, trad. Carmo Ferreira, Lisboa, INCM, 1990,

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