Sunday, July 22, 2007

Delfim Santos

Delfim Santos sempre se pautou por uma crítica persistente e construtiva dos (seus) tempos modernos. Época conturbada, marcada nos meios académicos, por uma tentativa de reorganização dos saberes, e pelo início (continuamente observado por Delfim Santos) de um período de letargia ou época de estagnação, testemunhada pelos diversos textos em tom de reflexão e alerta acerca das mentalidades e do papel da filosofia no mundo actual.
A exposição baseia-se nos comentários feitos pelo autor, e vive da interpretação original que Delfim Santos tem de Kierkegaard e de Heidegger.
O tema deste trabalho reside num horizonte em que o analisado se dá no campo do que está fora de qualquer análise. A reflexão a que nos propomos, assenta fundamentalmente na análise ou consideração da existência sob a perspectiva do ser em Heidegger, e do desespero em Kierkegaard, pois estes dois autores são intervenientes privilegiados na interpelação feita por Delfim Santos, à condição humana moderna, sendo a nossa tese que o papel da filosofia como operadora e criadora de horizontes de sentido que o autor português defende, está alicerçada pela intimidade entre ser e pensar tal como Heidegger a descreve, e pela tensão existencial proveniente do desespero na base da angústia que Kierkegaard advoga, dando a essa tensão desesperante, um carácter positivo.
O lugar da existência e do pensamento, as posições que estas duas faces da mesma moeda ocupam uma em relação à outra, estão na base da formulação da definição do existencialismo, em que a realidade primeira inexcedível e incomunicável é a existência, o ser, nas palavras de Delfim Santos, o sendo. Quer falemos em fortes sentimentos relativos à vida do eu, como Kierkegaard faz, quer apelemos à atenção sobre o que aparece, sobre a doação originária daquilo que nos rodeia, do que está sendo. Como já Feuerbach apelara, existe um esfriar da vida, da existência, pelo conceito, pela subjugação da esfera existencial do sujeito pelo edifício conceptual criado em toda a tradição reflexiva ocidental, sendo que este apelo de Feuerbach tem como destino o sistema hegeliano, culminar desse edifício conceptual.
A crítica fundamental do existencialismo parte do ponto de vista segundo o qual, uma qualidade ou faculdade humana, não pode ser privilegiada em detrimento das outras, e extrapolada relativamente a todo o conjunto. E é relativamente ao conjunto (homem) que se distingue o ser humano como algo mais do que soma de predicados, algo além, inapreensível e inalienável, que se furta a definições.
«O resultado foi que o pensamento, desenraizado da existência, reduziu esta ao mínimo, e de tal forma que o homem se desconhecia como homem no seu interesse de pensar sub specie aeternitatis.»1
É nos tempos modernos que Delfim Santos encontra a exigência de um novo homem que esbata esta diferença, arreigada ao longo dos tempos, e de cada vez mais dar ao pensamento o conteúdo da vida, da existência, da vivência, não numa relação antagónica entre esferas estanques, mas de todos fazermos um esforço de retorno repetido e sistemático à esfera do pensar e do ser.
«(...) preocupações dos homens, que se esforçam por ser contemporâneos de si próprios(...)»2
Este esforço comporta acções de informação ( recolha, estar a par da actualidade) e de formação ( enquadramento do saber adquirido, reflexão sobre o mesmo e sobre si), e o âmbito desta tipologia da acção é unificado pelo espanto, pela acção da filosofia, que é sempre uma acção (em última instância) de recondução e pensamento sobre o actual. A filosofia é a presença, e actualização de si próprio.
«A filosofia é actividade de fundamentação.»3
Não é propriamente um conteúdo, mas um fundamentar, actividade criadora de possibilidades, investigação dessas possibilidades, instigação à criação de mais possibilidades.
Concebida como criação, esta actividade de fundamentação comporta duas vertentes de referência:1)lógica
2)ontológica
Referências que reflectem a duplicidade da formação da relação com o real, como o formamos, e como estamos nele inseridos.
A filosofia adquire um significado de operante, opera e articula sobre o geral.
Como conciliar o «geral» com a esfera existencial e inapreensível?
Esse campo do eternamente velado, a experiência singular do sujeito, é inacessível no geral, a sua particularidade é geral. Quanto muito, a determinação de uma filosofia da existência cinge-se ao plano dos pontos de contacto, entre os quais se encontra esta noção de filosofia como impulso instintivo e racional, impulsivo e de atitude, filosofia, dizíamos, como operante.
«A filosofia é, portanto, ontologia fundamental. Com esta resposta, susceptível de mais funda interrogação, como é próprio da filosofia, indicamos o seu nível de radicalidade, a sua função objectivante, a sua intenção operativa e geral.»4
Esta preocupação do e a partir do ser, encontra uma planície de questionamento que podemos remontar a Heidegger, acrescendo-se o facto de que Delfim Santos muito estudou e co-mentou o filósofo alemão.
Na sua leitura de Heidegger, a distinção entre ser (sein) e sendo (dasein) adquire particular importância e singularidade, pois é a partir desta distinção que Delfim Santos se propõe pensar o sentido do ser, ou seja, todos os filósofos se debateram com esta questão, mas o professor Delfim Santos escolheu o posicionamento de Heidegger para se decidir na questão.
O ser tudo o que é, tudo o que existe, o sendo é a determinação, o modo de ser desse existente.
«O ser é o que determina o sendo como sendo, isto é, todos os aspectos empíricos da realidade.»5
A dualidade entre lógico e ontológico começa aqui a tomar rosto.
«Em resumo: o conhecimento essencial é o conhecimento do «ser» das coisas; o conhecimento existencial é o do «sendo».»6

A nível psicológico (ou lógico, se entendermos o lógico como estrutura operativa da mente), a própria actividade do pensamento dá pistas acerca da formação do real.
«Quand la pensée, reclamée par une chose, se tourne vers elle et la suit, il peut lui arriver de se transformer chemin faisant.»
«(...)de prêter plus d’attention au chemin qu’au contenu.» 7

Chemin faisant significa de passagem, pelo caminho, de caminho.
O que quer Heidegger dizer, quando afirma que devemos prestar mais atenção ao caminho que ao conteúdo?
Notemos a expressão utilizada por Heidegger, segundo a qual o pensamento é reclamado pelas coisas.
É proposta a reclamação do pensamento por parte da coisa, isto é, a coisa (qualquer que ela seja) reclama, arrasta, apela, o(ao) pensamento; e o pensamento se debruça sobre ela, segue-a, podendo até chegar a ela, mas esse chegar a ela é já caminho feito, tal como o debruçar-se, o seguir, e o «escutar» o apelo, a reclamação da coisa.
O ser reclama o pensamento, que o segue , que sobre ele se debruça, em suma, o pensamento reage ao ser «abraçando-o», envolvendo-o, e podemos dizer operando-o.
A coisa já é o estado final desta comunhão entre ser e pensar.
A «coisa» determinada já é o dado, já é o produto final desta interacção.
De que modo é a coisa determinada?
Em que consiste essa determinação?
Sumariamente, o prestar mais atenção ao caminho que ao conteúdo «(...)de prêter plus d’attention au chemin qu’au contenu.», é o procurar dar respostas a estas questões que se levantam, é o pensamento re-flectindo, pensando no seu modo de operar.
Qual é a importância dessa síntese, além do descobrir como funciona o nosso pensamento?
Essa síntese é uma relação, e ao descobrir e clarificar essa relação, nós não só trazemos à luz o que é a nossa mente (através da análise do seu modo de funcionamento), como a jusante deste processo poderemos dar resposta (mais clara) a questões tais como a identidade e a diferença.
Aqui a pergunta pela possibilidade do conhecimento enreda-se nos movimentos da consciência, mais que propriamente na junção, no ponto de contacto entre sujeito e objecto.
Este duplo debruçar-se (primeiro sobre a coisa, depois sobre o próprio modo de se debruçar - pensamento pensando como pensa) incide especialmente, mais uma vez, no processo e não no «produto acabado»
O ser é o que existe, o geral.
«Sendo é tudo de que falamos na vida corrente, o que pensamos e as nossas relações com o que pensamos, a forma de nos comportarmos perante este ou aquele facto e também o que nós somos e o como somos.»8
O ser é o que é comum nos entes, no sendo.
É que o homem enquanto ente inscrito no ser, e enquanto ser pensante, está aberto ao ser, sensível (em potência pelo menos), ao apelo do ser, colocado diante dele, habitando-o, referindo-se, reportando-se, ligando-se, relacionando-se com o ser, e ao mesmo tempo lhe corresponde.
O homem é este nexo de correspondência , e não só. Podemos falar de uma dialéctica circular fundada na identidade.
Senão vejamos:
1)a identidade é a restituição do mesmo a si mesmo no seio de uma unidade diversa (origem também da diferença);
2)a co-pertença é o elo que liga um termo ao outro, ligando-se a si mesma...

A B




3)o homem, porque nexo de correspondência (devido à abertura, à ligação ao ser, ao facto de ser pensante) é, num certo sentido a consciência do ser, retornando ao berço da identidade e da diferença, ou seja, o homem pensando o ser completa a síntese do uno e do diverso.
A pertença ao ser é parte do ser, porque é transpropriada, e o ser é presença, animando, interpelando, movendo o homem para si. A abertura do homem ao ser revela uma composição una e harmoniosa. A essência do ser revela-se no homem, e a essência do homem revela-se no ser, é isto que interpretamos como a transpropriação de um e outro.
«A existência compreende-se a si mesma, a partir sempre e unicamente das suas propriedades.»9
Esta dialéctica fundamental há muito que vem sendo afogada pelos esforços de ordem e mediação, e como tal tem sido esquecida.
Para o aprofundamento além deste pensar representativo tão arreigado em nós, é necessário um salto.
Tem de ocorrer uma ruptura, entre a representação do homem em categorias estanques, como o sujeito e objecto.
Foi esquecida a intimidade, e este abandono é um salto para longe da representação corrente do homem como animal racional, representação que se tornou relação estéril, porque se tornou sujeito para os seus objectos.
Só através, a partir de nós, se pode o ser desdobrar, estender, desenrolar, manifestar, em suma... ser presente.
Esta relação íntima contudo pode ser bloqueada por um voltar de costas ou tapar de ouvidos. Escutemos o apelo da esquizofrenia moderna, e deixaremos de ouvir o apelo do ser propriamente (pois dilui-se), o que não significa que não sejamos sensíveis a esse apelo. O nome da causa da falta de referente, da esquizofrenia? A técnica.
«O sendo é o que se mostra na experiência diária e constitui a esfera do ôntico. O ser que determina o sendo como sendo constitui a esfera do ontológico.»10
Esta interpelação que o ser faz ao pensamento, pode sofrer um eclipse se o pensamento se torna mudo ao ser, o que é possível quando o ritmo de vida é tal que tudo nos passa à frente como algo dado, óbvio. Neste aspecto, estar no mundo é um estar pobre, pois pouco estaremos com os outros e com nós próprios, pois perdemos os contactos com essas realidades, a função operante e criadora da filosofia enquanto espanto esbate-se e toma forma o ciclo vicioso...quanto mais insensíveis somos ao que nos rodeia, menos o que nos rodeia nos interpela.
«A perda do homem na vulgaridade, ou no mundo das coisas, mostra-se como fuga da sua própria existência.»11
A crítica à modernidade é uma reflexão comum ao pensamento de Delfim Santos, num duplo sentido, no empobrecimento dos arredores da vivência humana, e no em-mesmamento.
O temor de ser diferente, da solidão, do estranho, são tonalidades constituintes do mundo da maior parte dos homens.
Também Delfim Santos comenta a existência inautêntica como efeito deste empobrecimento do homem.
«A existência, e a preocupação que a exprime, pode manifestar-se de forma autêntica ou inautêntica.»12
A leitura que Delfim Santos faz da angústia, é devedora de Kierkegaard, e do modo como Delfim Santos interpretou o filósofo dinamarquês.
Mesmo deslocando o polo de atenção da angústia para a presença ante o proibido, como referência que se sente na escolha, Delfim Santos conserva a tensão na composição do eu.

«O homem é a possibilidade de ser quem nunca chega a ser.»13
O homem não tem espírito, é espírito.
O que é o «espírito»?
É o eu.
O que é o «eu»?
O homem é um eu, e o eu é uma relação que se estabelece consigo própria, não é uma relação que se estabelece com qualquer coisa exterior a si. O espírito consiste no orientar essa relação para a própria interioridade, o eu não é a relação em si, mas o seu voltar-se sobre si própria – ( o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida).
O homem é uma síntese de :
infinito/eterno/liberdade e de finito/temporal/necessidade.
Uma síntese é uma relação entre dois termos, e assim, aqui o eu não existe ainda.
Numa dada relação, por exemplo: A B , existem dois termos.

São respectivamente A e B. Mas a própria relação entra como um terceiro, que se relaciona com ambos esses termos, de maneira singular e de certo modo isolada, ou seja, o A relaciona-se com a relação, independente do B, e a mesma coisa se passa com este, independentemente do A.
Esquematizando na figura:

A B



Cada termo tem uma existência separada no seu relacionar-se com a relação. Repetimos, a relação é o terceiro elemento de si mesma.





Por exemplo existe uma relação entre mim e uma caneta que utilizo para escrever, entendida como alteridade, ela só se me apresenta num horizonte relacional. A consciência, a sensação de algo, é uma relação com algo. Relação é a conexão entre duas ou mais coisas , que se chamam termos da relação , sejam eles objectos , pessoas , factos ou acontecimentos .


A relação estabelece um vínculo de união entre os elementos relacionados e possibilita a unidade dentro da multiplicidade .
No exemplo dado pela caneta, eu sou o sujeito, ela o objecto.
Se esta relação se estabelece sobre si mesma, aí temos o eu.
«Se, pelo contrário, a relação se conhece a si própria, esta última relação que se estabelece é um terceiro termo positivo, e temos então o eu.»14
Mas como pode a relação estabelecer-se consigo, sem um objecto exterior a ela?
É o eu, a consciência de ter consciência de algo?
Ou é a consciência tendo consciência de si mesma?
A questão parece residir na necessidade de um elemento de alteridade, na relação ...
«A consciência sensível simples é a certeza imediata de um objecto externo. Um tal objecto tem, antes de mais, a determinação de ser um este, agora segundo o tempo, aqui segundo o espaço.»15 , dá-se um fluxo temporal no seio do agora (que se esvanece ao mesmo tempo que permanece), e existe um infinito espacial (o aqui nas suas dispersões por vários aquis realizados e possíveis). O aqui e o agora subsumindo sob a sua alçada as suas efectivações e possibilidades, são, como afirma Hegel, «(...)também este aqui contém em si de um modo simples muitos aqui; 16ou ambos são como universal, que nele tem ao mesmo tempo diferenças.)» .Mas desde logo somos alertados, por Hegel(implicitamente) que esta determinação espácio-temporal tem um referente, que é o sujeito. Como se dá a referência quando não há objecto sensível?
«§4 – Visto que a consciência consiste essencialmente na referência a um objecto, é diferente segundo os diversos objectos que tem.
§5 – Ao mesmo tempo porém, o objecto é essencialmente determinado pela relação da consciência com ele e torna-se diferente com o melhoramento da consciência.»17
É o eu, a consciência de ter consciência de algo?
Ou é a consciência tendo consciência de si mesma?
Hegel afirma que a autoconsciência é primeiramente, sensível18e concreta, e ainda que se voltada sobre si mesma, pode ser um objecto sensível e concreto, para si ou para outra consciência.
Parece ser a tese de que o eu é ter consciência de ter consciência de X.
É de difícil representação, mas o texto de Kierkegaard parece deixar em aberto a questão...
A A



Será que só podemos ter consciência da nossa consciência através da necessidade de uma mediação exterior? Talvez para podermos responder à questão, fosse necessário efectuar a experiência de não ter consciência de nada, para tentar apreender se conseguíamos... continuar a ter consciência... de nós.
Qual a natureza do eu? Ela só nos é facultada mediatamente? Até o esquizofrénico, no seu rodopiar de personalidades, mantém o seu eu, a primeira instância que o determina entidade, embora esteja privado de uma identidade.
Quando Kierkegaard afirma que uma relação que se debruça sobre si mesma, só o faz por si(por vontade própria - ?- ) ou por um outro, que ao estabelecer a relação ( terceiro termo) relaciona-se com ela.
Tentando clarificar não simplificando, ( e se a nossa leitura não está mal feita), Hegel e Kierkegaard partem da consciência do acto de ter consciência de algo, para definir o eu.
Mas esta autoconsciência, ou é estabelecida por si, como eu por exemplo quando quero pensar na minha consciência e a torno objecto dela mesma, ou é estabelecida por um outro (abrindo caminho à imanência?), que a faz incidir em si própria.
A relação desse outro que faz a consciência incidir em si mesma, é a relação que permite ambos os termos relacionarem-se. Suponhamos que essa alteridade é Deus. Ao fazer o homem ter consciência de ter consciência, sendo ele o obreiro desse re-flectir da consciência, Deus passa a ser o segundo termo da relação. Logo o homem ao virar-se para a interioridade, ao pensar sobre o seu pensar, relaciona-se com Deus.
Várias remissões são aqui possíveis, mas a mais flagrante a nosso ver, é a teoria agostiniana do homem interior.
«Uma relação desse modo derivada ou estabelecida é o eu do homem; é uma relação que não é apenas consigo própria, mas com outrem.»19
A questão acerca da necessidade de mediação no acesso à consciência da nossa consciência, não fica aqui resolvida, pois a consciência só se dá no seu exercício, qualquer que seja o objecto. A questão que não nos deixa de assaltar, ficará sem resposta... a proveniência desse exercício...ou seja o aqui e agora do eu, da entidade.
Toda a manifestação, doação, é já um resultado. A «fonte» permanece inacessível.
O sapiens sapiens parece ser nas palavras de Kierkegaard, um pequeno arranjo divino, que faz toda a diferença, ao nível do objecto da consciência, isto é , Deus permite a relação da consciência voltar-se sobre si mesma no homem.
Toda a consciência é uma síntese de transcendência e imanência, mesmidade e alteridade. No animal, a diferença reside no facto de essa síntese não poder ser objecto de si mesma.
Qual o papel do desespero em tudo isto?
Se fosse nossa vontade voltarmo-nos sobre a nossa própria consciência, se fossemos apenas nós os responsáveis por esse re-flectir, o acto de não querermos ser nós próprios de não queremos esse re-flectir seria a única prova do desespero.
Mas «a vontade desesperada de sermos nós próprios», essa inclinação para incidirmos a nossa atenção sobre a nossa atenção, isto é, em nós, é prova da existência de dois tipos de desespero, e da conjunção de ambos como síntese do eu.
Ou melhor, porque foi estabelecida (relação) por outrem, pode estabelecer-se consigo, mas este toque da alteridade da relação que a faz sobre si mesma incidir, é também relação, e assim, é relação com quem estabeleceu toda a relação.
Resumindo:
O eu é a conjunção de uma relação que se estabelece a si própria, e que é estabelecida por outro alguém, ou por outra coisa.
Temos então identificados três termos, primeiro termo ( consciência de X), segundo termo (consciência da consciência de X), e terceiro termo, que estabeleceu este re-flectir.
O eu do homem é uma relação que se relaciona consigo própria e com quem a estabeleceu.
As figuras servem apenas para visualizar e para tentar tornar mais claro:
Relação com o termo que flecte a consciência sobre si


A B
Como que se a consciência fosse um elemento mecânico que tem como função incidir sobre as coisas. Se pensarmos que é assim que funciona na maior parte dos animais, e que só o homem pensa neste mecanismo...
A prova para este terceiro elemento, como afirma Kierkegaard, é o facto de que se fosse apenas o nosso eu a estabelecer-se a ele mesmo, só existiria uma forma de desespero, mas existem duas formas de desespero :1)«(...)não queremos ser nós próprios, querermo-nos desembaraçar do nosso eu(...)»;
2) «(...)a vontade desesperada de sermos nós próprios.»20
«(...)o homem se angustia por ser homem, que aquele que mais fundamente sente a sua situação de homem mais preparado para a angústia(...)»21



Kierkegaard não o diz deste modo, mas quase que somos levados a notar o eu como constituído de desespero, pois não pode escapar ao balanço de uma dependência
Que dependência é esta?
Este voltar-se (do foco de atenção) sobre si mesmo, (mediante o acto da alteridade), leva o eu a afundar-se sobre o que o leva a incidir sobre si, isto é, sobre a relação instituidora.
A consciência de termos um eu (fruto da consciência de ter consciência de X), não é algo agradável para a maioria das pessoas. Temos um eu, e o que é que fazemos com ele?
Para que é que serve?
Serve para alguma coisa a não ser para desesperar?
Não queremos ser nós próprios, é desespero, e queremo-nos livrar dele.
Mas como temos esta possibilidade (ou cruz para carregar?) de flectir a consciência sobre si mesma, e uma curiosidade predadora, queremos ao mesmo tempo ser o nosso eu, fazer a genealogia da nossa ipseidade. A escolha parece não ter residência nesta dialéctica. Parece que o homem está determinado por duas forças (desesperantes) antagónicas no seio da sua interioridade.
O eu é incapaz de atingir o equilíbrio.
«No desespero, a discordância não é uma simples discordância, mas a duma relação que, embora orientada, para si própria, é estabelecida por outrem; de tal modo que a discordância, existindo em si, se reflecte além disso até ao infinito na sua relação com o seu autor.»22
Assim, encontramos a escolha como paradoxo. O determinismo que é a síntese do eu, nas duas modalidades do desespero, só aparece numa escolha obrigatória, a saber, o ciclo infinito de uma re-flexão sobre si mesmo. A escolha é determinada. Como pode isto ser?
Quer eu escolha penetrar no eu, quer eu escolha ignorá-lo, escolho sempre o desespero, escolho sempre algo que já está definido à partida. Existe uma possibilidade de escolha com um só caminho, o eu.
Apenas existe o retorno ao eu, através do retorno a si mesmo, mas o retorno à sua mesmidade é o retorno à alteridade que o constituiu.
À maneira de um cachorro que persegue a cauda, a perseguição do eu nunca conduz ao eu, e no entanto existem dois caminhos para o eu. Respectivamente a relação que incide sobre si mesma, e a mesma relação que incide sobre aquilo que a faz sobre si mesma incidir. Este é o paradoxo originário da escolha. Mesmo o não escolher já é uma escolha.
O que é o desespero?
O homem sente uma inquietude.
É o desespero uma qualquer indisposição de ânimo?
De certo, tem apenas pelo facto de se referir à anima.
A esfera da propriedade de ser sujeito (paradoxal), é o berço de todo e qualquer acto de consciência. O eu, para Kierkegaard, estabelece-se mutatis mutandis no mesmo terreno, e do mesmo modo em que se pode aplicar a dialéctica do senhor e do escravo de Hegel, e que analisaremos um pouco mais à frente.
Se a incidência da consciência nela mesma fosse da exclusiva responsabilidade do sujeito, ou melhor, da sua vontade, só existiria o desespero da consciência que não quer sobre si incidir. Mas também é da vontade da consciência sobre si mesma incidir. Isto é, a tal vontade desesperada de sermos nós próprios, quando aquilo que somos é espírito...O espírito é o eu, e o eu é a relação que se conhece a si própria.
O homem só desespera se tiver consciência de ser possuidor de um eu, e se para isso tem de (esporadicamente) se debruçar sobre o seu ser, voltar a ser o que é.
Só podemos não querer ser aquilo que somos, se primeiro tomarmos consciência de que somos, isto é, sendo, e este sendo é a relação que se orienta para si mesma.


É à vontade de sermos nós próprios (segunda e originária forma de desespero) que se reduz e resolve todo o desespero.
Ao incidir sobre si, a relação obrigatoriamente incide (ou tenta incidir) sobre o que estabeleceu toda a relação.
Nesta tensão, consideramos duas notas, que constatamos de vital importância...
Existem duas formas do verdadeiro desespero e duas formas da referência desse mesmo desespero:
1) eu estabelecido por ele próprio- a) a nível da entidade, a consciência não quer incidir sobre si mesma, não quer ser ela mesma;
b) a nível da identidade, o indivíduo não quer ser o que é, projecta-se no virtual, quer ser outra coisa qualquer;
2) eu estabelecido por outrem- a) a nível da entidade, a consciência quer incidir sobre si mesma, quer ser ela mesma;
b) a nível da identidade, o indivíduo quer ser o que é, quer precipitar-se no real, e querendo ser o que é , é porque não o está sendo, o que significa que a consciência não está a incidir sobre si mesma...
Toda esta estrutura não nos é estranha
acessível senão na forma de paradoxo. Este absurdo que não pode deixar de ser, está na natureza do eu. E na natureza do eu está o desespero.
Podemos ter consciência do nosso desespero, ou podemos não ter consciência do nosso desespero, o que não implica que não estejamos desesperados. Podemos ter consciência dele e atribuir-lhe causas que não são as reais. Ter consciência de se estar no desespero, e dele querer profundamente sair, por si – mas por si não o consegue, e o seu , nosso esforço, só nos faz afundar mais nas areias movediças.
O desespero é fruto de uma discordância, entre as duas tendências do nosso eu, que já referimos anteriormente. É bastante inescapável.
Porque a relação se orienta para si, é estabelecida por outrem, esse flectir sobre si mesma é sempre o cão que tenta perseguir a sua cauda, até ao infinito.
«Eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente o desespero: orientando-se para si-próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até ao poder que o criou.»23
No geral, o desespero é uma vantagem, que o animal por exemplo não tem.
O homem define-se como sendo um ser desesperado?
O desespero distingue o homem. O homem tem um eu.
«A superioridade do homem sobre o animal, está pois em ser susceptível de desesperar; a do cristão sobre o homem natural, em sê-lo com consciência, assim como a sua beatitude está em poder-se curar-se.»24
Mas o desespero é a maior das misérias e a perdição para o homem.
Kierkegaard refere-se a esta problemática, esquematizando duas posições relativamente à relação do possível com o real:
1)Ascensão : (a passagem do possível ao real – poder-se ser o que se deseja, está contudo abaixo de efectivamente sê-lo – quanto mais perto do real, mais se progride);
2)Queda : (do virtual ao real «(...) a margem infinita do virtual sobre o real dá a medida da queda.»25
Assim, tudo o que não seja desesperar, é uma elevação.
Não desesperar equivale à absoluta ausência de desespero, ou melhor, equivale à destruição da possibilidade de estar desesperado, à aniquilação a cada momento, da possibilidade de ficar desesperado, assim a dialéctica consiste em ficar desesperado aniquilando logo de imediato essa possibilidade, de estar desesperado.
O desespero é vantagem e perdição. Provém do eu. Deve-se ao facto de possuirmos um eu. Ao mesmo tempo, é movimento.
O ser não desesperado é uma afirmação completa do real, logo, é a destruição do virtual, virtual «impotente e destruído», isto é, o real nega o possível.
O desespero é inerente ao eu. Deus ao fazer com que o homem seja esta relação, «como que o deixa escapar da sua mão», fazendo a relação depender de si mesma. A necessidade do desespero fornece a autonomia. O estar preso ao grilhão do desespero é o primeiro passo (incontornável) para a liberdade.
O desespero é responsabilidade do eu. A persistência do desespero só depende do eu, da sua atitude para com o desespero. A tensão desequilibrada e variante das duas tendências do espírito, determina o carácter a e persistência do desespero.
O desespero a cada momento de contrai, e a cada momento se pode extirpá-lo. O desespero é uma categoria do espírito, «(...) que no homem diz respeito, à sua eternidade.»26
«Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem duma doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, num relâmpago, raramente um medo inexplicável lhe revela a presença interna.»27 Acredite-se ou não que se é desesperado, padece-se de desespero.
O desespero assume várias personalizações. Elas dependem do arranjo entre as forças que compõem o eu.
O eu é composto de finito e de infinito. O relacionar da relação consigo mesma, é a liberdade.

O eu é liberdade, que por sua vez é a dialéctica das categorias do possível e do necessário.
Conscientes ou não, somos desesperados, porque temos um eu.
A consciência interior dá a medida do eu, do desespero.
«Quanto mais consciência houver, tanto mais eu haverá, pois que, quanto mais ela cresce, mais cresce a vontade, e haverá tanto mais eu quanto maior for a vontade. Num homem sem vontade, o eu é inexistente; mas quanto maior for a vontade «, maior será nele a consciência de si próprio.»28





















Conclusão:

No intento de abordar os pontos de contacto entre Kierkegaard, Heidegger e a interpretação que Delfim Santos faz destes pensadores, tentámos estabelecer a raiz comum aos três, que na nossa interpretação é o facto de ser na existência, ou melhor, a partir dela, que podemos partir para a compreensão antropológica.
A relação ser/pensar, a definição da filosofia como operar aglutinador, e a tensão existencial traduzida pelo desespero, como tomada de posição no mundo, são os conceitos da afirmação de Delfim Santos, em que o homem é a sua existência.
Somos chamados para uma noção de homem em situação, imerso numa dinâmica existencial, que se apoia no carácter interpelativo e operante da filosofia.





Bibliografia:
Santos, D., Obras Completas- Vols. I-IV, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p.460
Heidegger, M., Le Principe d’Identité in Questions I ,trad. André Préau, Saint-Amand (Cher), Gallimard
Hegel, Propedêutica Filosófica, trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1989
Kierkegaard, S., Desespero, a Doença Mortal, trad. Ana Keil, Porto, Rés Editora

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