Sunday, July 22, 2007

Reflexão sobre alguns pontos de contacto entre o livro bíblico da Revelação e a História do Futuro do Padre António Vieira

Introdução:
Duas noções prenderam a nossa atenção na leitura da História do Futuro.1
A questão da utopia nesta obra do jesuíta, e a exegese do último livro da Bíblia, o Apocalipse.
A utopia é uma projecção ou metaforização que tem como referência a própria realidade que é projectada ou metaforizada.
Tem de haver um ponto comum entre a «realidade efectiva» e as realidades possíveis.
É esse ponto comum que permite o duplo sentido de reconhecimento de ambas por parte do «intérprete».
Neste aspecto não podemos conceber a utopia como um sistema de encarceramento do espaço e do tempo. É antes um desdobrar desse espaço e tempo, na medida em que exprime a infinita potência de um só acto (também ele infinito e inapreensível...) ou seja, a realidade «objectiva», aquela que é consensual para o maior número, é o «acto» acto inapreensível, quer na apreensão das perspectivas que sobre ele se debruçam, (cada um de nós tem a sua...) quer mesmo devido ao carácter virtualmente infinito de variação de perspectivas de cada sujeito. A célebre relação binária entre sujeito e objecto permite uma combinação virtualmente infinita de pontos de vista sobre um número virtualmente infinito de coisas. É óbvio que o escritor da utopia não pode construir nada radicalmente diferente daquilo em que está inserido, sob pena de se tornar impensável (paradoxo) para ele e para os outros. A construção de uma realidade alternativa germina sempre do solo da «realidade objectiva». O grau de variação ou invenção do «utopista», a forma como ele molda os dados que tem, (a matéria prima também de outro qualquer ficcionista) determina a proximidade ou distância do mundo criado. Em suma, tudo germina da realidade aceite, objectiva, da mundividência consensual.
Assim, tomamos esta metaforização, ou projecção não como um encarceramento do tempo e do espaço, mas sim uma fuga do mesmo. A base da realidade consensual é o contexto espácio-temporal. É precisamente isto que a utopia tenta desviar.
A utopia é sempre uma mensagem sobre o aqui e o agora, e ao contrário de encarceramento, é uma fuga, ou uma tentativa de fuga desse mesmo aqui e agora, nunca o perdendo de horizonte.
Não podemos dizer que a utopia crie um antiuniverso, tal é impossível, tanto como o é pensar o que não é pensamento. Pode existir esse desejo por parte do escritor, mas estará sempre condenado a um quadro do qual não pode escapar, tal como um pintor não pode pintar com cores que nunca viu.
Mais do que tudo a literatura utópica, embora projecte espaços paralelos, e tempos diferentes, quer sempre fazer inserir o cerne da mensagem no aqui e no agora.
Nesta perspectiva poderíamos dizer que a HF é uma utopia.
Essencialmente pela estrutura de tempo, e as relações entre as «partes» desse tempo, o passado, presente e futuro, que Vieira combina, e ordena de modo a que num certo momento as funde. Aqui deixa de ser utópico o intento de Vieira, pois dissolve o tempo.
Esta é uma das nossas teses.
Essa dissolução ocorre no âmbito de um propósito cósmico.
Os desígnios de Deus dão estrutura à Bíblia, e nela os seus intentos dissolvem o tempo, especialmente no culminar do espaço e tempo cósmicos, (quer dizer intemporais e não espaciais) que desembocam no Apocalipse.
Em rigor Deus não profere uma profecia, é omnisciente. O tempo não é relevante para ele, só para o homem, é laço de memória do limite humano, é cruz que se carrega na via-sacra do temporal. Quer isto dizer que está tudo fixado desde o início, e que o desenrolar do tempo humano é irrelevante para um Deus que já fixou o desfecho da história e para quem não existe tempo, pois se o tempo é uma sucessão de instantes, e se no início era apenas o verbo, o logos divino, então a omnipresença divina não se dá apenas no espaço, mas também no tempo. Deus não conhece apenas os futuros, vive-os.
Mas está além quer do provável, (ou até muito ortodoxo) é apenas uma hipótese (não passa de uma conjectura), quer do âmbito deste trabalho.
São estas as duas traves-mestras que nos nortearam na análise da História do Futuro.
A utopia e a exegese da Revelação, com particular incidência sobre a vertente de pensamento milenarista.
As remissões neste trabalho são sempre em direcção à edição da obra de Vieira já citada, e à Bíblia, cuja edição utilizada, é a recente edição dos Monges Capuchinhos, que é uma edição com alguma projecção junto dos estudiosos do Livro.





A esfericidade do tempo

Para Vieira, o homem é um ser de esperança. Queremos com isto dizer que na sua natureza, a aspiração ao conhecimento, e em especial, ao conhecimento do futuro está profundamente constituída. E como queremos a antecipação do que é agradável, quer seja em conhecimento, quer seja em efectivação na acção, o conhecimento do futuro, o seu desejo, é esperançoso.
A diferença entre divindade, e homem, está na posse dos conhecimentos futuros, ou melhor, nos conhecimentos do futuro. Se Adão no paraíso se apoderou do conhecimento do Bem e do Mal, Deus não quis que tivesse acesso ao fruto da árvore da vida e se tornasse imortal. A subjugação ao tempo (mortalidade), às dores do parto, a ao árduo trabalho para retirar sustento da terra, são metaforicamente, sujeições ao tempo, na medida em que as dores do parto são as dores da geração e do carregar essa geração durante nove meses, e na periferia do jardim do Éden o ser humano sofre as consequências da corrupção, ou seja, envelhece. O árduo trabalho para retirar sustento da terra não se limita ao esforço físico, que acelera a decrepitude, mas aplica-se também aos esforços humanos sujeitos à mudança das estações (tempo circular), e entre outras coisas, ao facto de que para evoluir na sua ciência do Bem e do Mal, o ser humano tem de actuar civilizacionalmente, isto é, os esforços e avanços não se limitam ao esforço de uma vida particular, tem de ser passados e desenvolvidos de geração em geração.
A noção de castigo, devido à transgressão, em que o tempo é factor determinante aparece na frase em que Deus deixa bem claro:
«E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, todos os dias da tua vida.» Génesis 3:17
Não é só o facto de não haver tréguas para a dificuldade, que está aqui patente.
É o facto de o Senhor mencionar, que é para todos os dias da vida...que está reservado o sacrifício. Os castigos gregos de Prometeu, Tântalo, Sísifo, etc., não deixam de ter remissão aqui, sendo sacrifícios ao tempo...à eternidade do suplício. Penoso trabalho para ser «desfrutado» durante toda a vida. Faz parte da vida ser acompanhada de martírio.
A esperança reside no futuro, nos tempos melhores, do porvir.
Mas a esperança num futuro melhor, é legitimada pelo facto de Deus condenar o homem ao sofrimento? É que esta condenação é um castigo, não uma maldição. Há esperança num futuro melhor, e é necessário que assim seja, pois não se pode conceber uma vivência decente sem esperança ou com receio do futuro. É um castigo muito irónico, pois o homem desobediente é lançado por sua conta e medida para fora da terra idílica, e como queria ser igual a Deus vai ter de se servir das suas obras, e do seu livre arbítrio para se governar a si e aos outros. Vai depender daquilo que não era suposto ter.
Mas por falta de explicação melhor, talvez a memória intemporal e original de uma ligação ancestral com o Criador, seja o élan da esperança. Porque um dia estivemos ligados ao Criador, temos ainda resquícios dessa felicidade na memória, e ansiamos a concretização futura de algo que como que ficou quebrado... a re-ligação.
Mais uma vez, tudo isto não teria sentido se a Bíblia, entendida como fruto de inspiração divina, não possuísse um sentido escatológico. Esse sentido revela-se (mas não só) com a máxima força, no Livro da Revelação. Curiosamente um livro que versa sobre o futuro na senda de uma profecia do passado, a primeira profecia.
O último livro da Bíblia chama-se «A-po-ká-ly-psis», que é uma palavra grega, que modificada para a forma corrente de Apocalipse, tem na sua etimologia o significado de «exposição», «exibição». Resolveu-se denominar esse livro de Revelação.
A Revelação versa sobre o «dramático apogeu do grandioso propósito de Jeová» que é o Deus das Escrituras.
O livro da Revelação não é apenas o culminar, o desfecho de uma história que principiou no Génesis há cerca de 6000 anos. É também o culminar de um acto divino que é tão só o de santificar o Seu nome perante toda a criação (Ezequiel 25:17;38:23).
O Génesis relata a Criação, inclusive o zénite da criação que é o ser humano. Relata também a primeira profecia, proferida pelo próprio Criador no paraíso. O episódio encerra em si um significado muito profundo, e são intervenientes uma serpente acabada de ser usada para enganar a primeira mulher, Eva, que por sua vez persuadiria o seu marido Adão para também violar a lei do Criador. No decorrer do julgamento do casal pecador, Deus profere, como já foi notado, a primeira profecia, que aqui transcrevemos:
«Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.» Génesis 3:15
Esta profecia estabelece o tema para toda a Bíblia, especialmente para o livro da Revelação.
Que propósito é este, o do Deus dos hebreus?
Que significa santificar o seu nome perante toda a Criação?
A Revelação explica detalhadamente o término triunfante da questão. Ajuda também a entender as questões envolvidas e a obter uma visão geral dos propósitos divinos.
O primeiro livro fala da Criação, o último revela o Criador na sua intenção.
O que significa a primeira profecia, proferida pelo Inspirador dos profetas?
Estas questões serão analisadas um pouco mais à frente, no decorrer desta exposição.
Deus deixa-nos às escuras, sem a mínima ideia daquilo que pretende de nós, do que é suposto que façamos e sejamos?
Se dermos um pouco largas à boa vontade da nossa interpretação, poderemos encontrar a epopeia na revelação divina nos primeiros versos do Pentateuco. Deus afirma, acontece, no momento em que formava Adão, já sabia o que ia acontecer. Quando trouxe à existência o seu «braço direito», o segundo na hierarquia celeste, Deus já sabia o que iria suceder. No entanto, não só a história se concretizou, como Deus, dela deu testemunho ao homem.
Á primeira vista, seria uma maldade inimaginável saber de todos os crimes cometidos contra o ser humano, pelo ser humano, contra o Espírito Santo, pelo ser humano. Mas faz tudo parte de um propósito divino, o de santificação do nome de Deus perante toda a Sua obra. E é também um imenso teste de personalidade.
Tudo já aconteceu na mente divina, tudo já está presente e como que decidido nos desígnios de Deus. Deus diz como vai ser, e é assim que vai acontecer... Mas não existe um destino, o que existe é uma omnisciência intemporal, e que é revelada ao homem através da profecia.
Existe uma conjugação, entre o desejo de conhecer os futuros por parte do homem, tal como é propósito divino revelar os seus intentos. E se já no paraíso o ser humano era pródigo em desejos pelo proibido, e sua virtude consistia em vencer a sua tendência como prova de respeito, também na profecia devido ao seu carácter enigmático, o homem tem de se esforçar para penetrar nela, dependendo o seu sucesso não só do seu ( e do de outros) engenho, como do tempo certo, em que Deus deixa fazer-se luz sobre a profecia. Parafraseando Pessoa, Deus quer, o Homem esforça-se por entender, a profecia é deslindada. A revelação da profecia só ocorre quando o que profetiza se torna efectivo, pelo que se for deslindada antes da ocorrência, tanto mais o valor profético é acentuado.
«Como é inclinação natural do homem (e muito mais depois da natureza corrupta) apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo (...)
Tão mal sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus (...) antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.»i
Mas, tudo o que é desejado se vê rodeado por poder, e abusos de poder. Se todos queremos saber com que linhas se cose o futuro, quer por temor, ou a favor do sonho e antecipação do porvir, os detentores desse saber ganham poder e ascendente sobre nós.
E como há sempre abusadores e impostores ( quer saibam que o são, quer não o saibam), é necessário um critério para poder avaliar o carácter profético da profecia, que só terá uso antes do discernimento do seu valor de verdade, o que torna muito difícil avaliar uma profecia, uma vez que só quando ela se concretizar, saberemos se era realmente profecia ou não, mas aí já pouco uso terá para nós.
Quais os parâmetros de avaliação profética?
O conhecimento virá (utilizando as expressões de Vieira):
1) através do lume natural do discurso (razão, observação do tempo, costumes, épocas, etc., e estado do mundo);
2) através do lume sobrenatural (Deus revela, dá a profecia).
Ou seja, podemos clarificar o valor profético e a autoridade da profecia através da inferência da especulação natural própria, e através da revelação sobrenatural e divina.
Não queremos aqui induzir a um combinado culinário, em que tendo nós os ingredientes, facilmente cozinhamos um caldo adocicado, isto é, mesmo verificando a solidez dos parâmetros já citados, tudo depende do tempo certo de revelação, como por exemplo o livro da Revelação, em que é certo, quase indubitável ser de inspiração divina, e por isso canónico, e cujo significado oculto tem vindo a ser estudado e debatido ao longo das eras, e ao longo das eras, se tem aplicado o seu tom profético final, mas até hoje, com consequente não verificação efectiva.
Porquê? Porque ainda não chegou o tempo próprio.
As profecias dos profetas são archotes que iluminam trechos não de espaço, mas de tempo. O resto pode ser inferido pela razão, pelo lume da razão, como afirma Vieira.
Os livros dos profetas são o princípio e o fim, mas o caminho intermédio, de exegese e estudo ruminoso, tem de ser percorrido por nós.
A natural obscuridade das profecias pode ser minimizada com a ajuda dos apóstolos, e dos padres doutores da igreja.
Parafraseando o jesuíta, no labirinto dos futuros, as profecias e os doutores são as tochas que alumiam, o entendimento e o discurso, são o fio de Ariadne.
Grande parte da História do Futuro debruça-se na clarificação do espírito profético. Sendo o livro Anteprimeiro o alicerce de todo o conjunto, pois examina e explana os critérios e questões relativos ao verdadeiro conhecimento da verdadeira profecia.
Não está no âmbito deste trabalho, fazer essa análise detalhada, pelo que passamos ao ponto seguinte.
Existem duas instâncias a clarificar como base de inferência, as profecias canónicas presentes na Bíblia e não só, legitimadas por concílio ou tradição através do consenso entre os padres e coerentes com as Escrituras; e as profecias não canónicas mas no caso de Vieira, dignas de serem tidas em conta, prenhes do mesmo espírito profético, proveniente de Deus. Se as profecias canónicas recebem a sua autoridade de Deus, as outras recebem autoridade pelos seus efeitos...
Às profecias:
1) canónicas
2) inferências rigorosamente extraídas das profecias canónicas e Escrituras;
3) não canónicas ( mas de certeza moral e salvaguardadas pela verificação dos efeitos);
4) e as que ficam dentro da probabilidade opinativa – não provadas, investigadas, etc.
corresponde um valor de:
1) verdadeira com certeza de fé;
2) verdadeira com certeza teológica;
3) verdadeira com certeza moral;
4) verdadeira com certeza provável.
Estes são os quatros pilares da obra. Vamo-nos cingir às profecias canónicas.
É tese deste trabalho que a declaração divina proveniente da divina omnividência «temporal», é para o ser humano profecia, e que se é proferida por Deus, então vai acontecer, dependendo a visão humana da mesma apenas da justa e correcta interpretação, que por sua vez, sofre o mais importante concurso da vontade divina.
É tese deste trabalho dizíamos, que se o futuro está descrito, delineado a nível geral, por Deus, então a profecia é um elemento dissolvente do tempo, como síntese dos três momentos temporais, escrita no passado, interpretada no presente sobre algo do futuro.

O tempo para Vieira tem tal como o mundo, dois hemisférios:
1)superior e visível e que é o passado;
2)outro inferior e invisível que é o futuro.
No meio dos dois ficam os horizontes do tempo que são os instantes do presente que vamos vivendo. Horizontes onde o passado termina, e o futuro vai começando.
O presente é o instante, não pertence a uma metade da esfera, nem à outra. A perpetuidade do tempo reside num passado que sempre se acaba, é passado, e um futuro que sempre começa. Este limiar entre um eterno começar e um eterno acabar é o presente. Mas o presente só tem razão de ser como algo abstracto, pois assim que pensamos nele, já passou e já outro veio e passou também.
Os habitadores do futuro, são os antípodas do passado, e a novidade daquilo que irá acontecer no futuro, vem não só do facto de ainda não ter acontecido, como do facto de nunca haver acontecido antes. Ou seja, a novidade, sem ser considerada como instante abstracto, estabelece a relação entre o passado, o futuro e o profético. O futuro encerra em si um valor profundo sobre o presente, conhecê-lo, se for pernicioso permite precaução, se for favorável permite antever sonhando, mas de qualquer modo, o conhecimento do futuro aplica sempre um referencial prático ao instante, ao presente.
O símbolo do Millenium, é uma serpente que morde a sua própria cauda.
Referimos a circularidade do tempo em Vieira, não só porque é uma ponte para a introdução ao pensamento milenarista, como nos permite clarificar que o desfecho cósmico daquilo que foi predito, é um retorno a si da profecia divina, tal como o é o preciso ponto em que a serpente morde a cauda. Não nos referimos aqui a um tipo de eterno retorno, mas a uma circularidade temporal que a profecia reflecte e que Vieira tão bem mostra e explora. O cumprimento da profecia relativiza o tempo até torná-lo secundário, podendo nós caminhar radicalmente para uma noção na qual ele passa a ser supérfluo. A autoridade e milagre da mesma provém do salto que dá no tempo, coisa que só a divindade pode fazer, ela é uma incursão do divino no profano. É uma manifestação, cujo valor principal é esse mesmo, ser manifestação do divino, mais do que ser uma excepção à regra. Se todos tivéssemos a capacidade de prever o futuro, não existiria uma noção de profecia. Não só a profecia reflecte um esbatimento do tempo, que a ela não resiste, como no caso do Deus judaico-cristão, é uma intervenção de carácter teleológico, pois é não só a comunicação do que vai acontecer, como é peça de um puzzle, de um propósito teleológico, intencionado e predito, a santificação do nome do Criador, perante toda a Criação.
Salta do tempo a profecia, porque foi predita, e porque foi predita, prevista antes da existência do tempo, na «mente» do Criador. E é na mente do Criador, que o tempo se torna circular, pois torna-se essencial poder provar ao Criador que nos esforçamos, e é condição necessária de efectivação do livre arbítrio.
Se Deus tivesse evitado a concepção de Hitler, não lhe teria dado a oportunidade de escolher entre cometer os crimes que cometeu, e proceder de outra forma.
A revelação é a obra que mostra a imensidão infinita da sabedoria eterna, intemporal, de Deus, e a sua acção, ao mesmo tempo que mostrando limites ao homem lhe dá uma lição de humildade.
O problema na base da profecia, e do crédito da mesma, não é só o da sua veracidade, é o problema central bíblico, é o problema da autoria. O problema da autoria tem exemplos espalhados por toda a obra bíblica, quer seja o desejo de poder e adulação pelo primeiro anjo caído, quer seja por Moisés ter afirmado a sua autoria quando fez a água jorrar da rocha, quer tenha sido o bezerro de ouro, a idolatria, que revela ingratidão e vai contra o propósito divino de santificar o Seu nome.
A relação de Deus com a Sua Criação é muito simples, Deus e a Sua vontade revelam-se na Sua Criação.
As profecias são próprias do tempo em que a igreja não as consegue (ainda) interpretar, pois ordenada e sucessivamente, o tempo vai dando sinais, sinais do que dizem as profecias, e as profecias são esses sinais (quando verdadeiras).
O livro da Revelação, como é descrito por Vieira, é um livro fechado não a sete chaves, mas a sete selos, que se vão rompendo gradualmente revelando a Revelação. Estamos no reino do simbólico, sete é o número da perfeição.
Este mundo, onde essas profecias se revelam, é um teatro, a História é a comédia de Deus, e se uma peça teatral tem partes, a História tem idades. A aparente maravilha não entendida da História é o suspense com que Deus vai prendendo e chamando a nossa atenção.
A profecia é o sinal da vontade de Deus, a efectivação da profecia é o retorno do mundo, do tempo à palavra do Deus que a proferiu. Não só o acontecimento ocorre antes de ocorrer, na mente todo-poderosa do Todo-Poderoso, como quando realmente se efectiva o acontecimento descrito na profecia o tempo é diluído pois a palavra passada torna-se ocasião presente.
A boca da serpente (como símbolo do Millenium, percebe-se a intenção da escolha do animal, mas para a simbologia Cristã, a escolha é um pouco infeliz) volta a morder a sua cauda. Diluir a profecia é diluir o tempo.
Quando digo, «– Amanhã vai chover.», quando chove, o que eu previ é a realização das palavras passadas, a palavra torna-se acção, e não só o tempo se esbate, como a profecia deixa de o ser para ser «realidade», como há uma transição do reino das palavras para o reino das coisas.
Se com o avançar do tempo avançamos para o desfecho do que Deus disse, cada vez mais estaremos próximos de decifrar o significado profético (não esquecendo que Vieira explora a fé através da profecia) , pois hoje:
1)descobrimos mais porque olhamos de mais alto
2)distinguimos melhor porque vemos de mais perto
3)trabalhamos menos porque achamos o «caminho livre», mais desimpedido

A)o caminho está mais desimpedido porque os nossos antepassados cavaram e varreram aquilo que nos podia obstruir o empenho e o caminho
B)vemos de mais perto porque estamos mais chegados ao futuro
C)olhamos de mais alto porque somos anões nas costas de gigantes


O milenarismo foi a doutrina partilhada por diversos escritores dos primeiros séculos após o nascimento de Cristo (e também de certas seitas cristãs modernas), segundo o qual Cristo reaparecerá na Terra para reinar durante mil anos.
O milenarismo tem uma raiz hebraica e é fundamentado nos profetas bíblicos e foi assimilado pela religião cristã, e a partir do monge calabrês Joaquim de Fiore, a tónica foi-se acentuando no livro do Apocalipse.
Durante os vários séculos que se seguiram, foi-se compondo um corpo doutrinário que era a tradução de uma reflexão sobre o sentido da «Grande História», da história universal, nomeadamente no sentido teleológico. Óbvio é que o fim dos tempos foi, e é uma preocupação vital para este pensamento, pois Deus tem um fim, finalidade para nós, e porque a história bíblica pouco se importa com o tempo, ele só interessa como acessório do fito divino, e porque a escatologia das Escrituras é dual, existe o Bem e o Mal, e existe esse tal desenrolar das coisas de Deus no tempo, e no fim haverá um julgamento, que só é fim para o que não é de acordo com a sua natureza, a jusante de tudo isso... tudo decorrerá de acordo com a vontade do Criador...para sempre, o que é eterno, está fora do tempo, o tempo é um acidente necessário nas coisas dos homens e de Deus.

A Revelação

A revelação foi feita a João, pescador iletrado, cuja tradição identifica com o apóstolo João, mas cujas provas não são suficientes sequer para tal afirmação, mas são suficientes para dizer que João era irmão de Tiago, e filho de Zebedeu, um dos doze apóstolos.
O Apocalipse é um livro carregado de imagens grandiosas e simbólicas acerca do fim dos tempos. Encaramos o fim dos tempos, não só como no sentido de um fim deste sistema de coisas, como encaramos o fim dos tempos numa dupla acepção: como consequência «política» decorrente do fim deste sistema de coisas que se resolve num novo governo por parte de Deus, e como consequência desta consequência, isto é, como consequência da instauração de um governo eterno, o tempo deixa de ter sentido, dissolve-se / acaba-se.
Acreditamos, tal como Vieira e Joaquim de Fiore, que na revelação a João não se encontram somente meras mensagens de fatalidades ou cataclismos, ou visões sobre o fim do mundo, mas também mensagens de revelação dos propósitos divinos.
«É melhor o fim de uma coisa do que o seu princípio (...)» Eclesiastes 7:8
Toda a Bíblia comparada com a Revelação, é um mero descrever, onde sem dúvida encontramos um sentido, mas sem a força do último livro, onde Deus revela toda a finalidade da Sua Obra.
A finalidade é :«Desta maneira, manifestarei a minha grandeza e a minha santidade, e far-me-ei conhecer aos olhos de muitas nações. Então, reconhecerão que eu sou o Senhor.(Javé)» Ezequiel 38:23
Mas deixemos a maior parte do corpo do último livro da Bíblia, para nos focarmos na última parte do último livro.
«Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.» Génesis 3:15
Esta foi a primeira profecia bíblica.
O reinado milenar de Jesus Cristo começará depois da clausura do anjo caído e dos seus seguidores, no abismo onde ficarão retidos durante mil anos, durante os quais deixarão de apoquentar os seres humanos. É Cristo que possui a chave do abismo e que vai ao encontro dos futuros prisioneiros, coloca-os no abismo, fecha o abismo para que eles, os anjos caídos não desencaminhassem as nações da Terra. Mais uma vez aqui, Deus assegura sempre a possibilidade de escolha, de livre arbítrio até às últimas consequências, na medida em que o reinado milenar livre do mal, permitirá após a derradeira soltura deste, a decisão aos humanos de qual o sistema de governo que preferem. Se o de Deus, se o de outro.( ver Revelação 20:1-3)
O pecado original não foi a desobediência de Adão, foi sim o orgulho daquele que até então se posicionara muito perto do Criador. Esse orgulho desmedido resultou no desencaminhamento de Adão, e a partir daí o inimigo de Deus tudo tem feito para conseguir o maior número de fiéis para a sua causa. O homem, na Bíblia, sendo o ponto alto da Criação, é uma mera marioneta nas mãos daquele que apenas persiste no seu orgulho.
A guerra movida aos elementos humanos imbuídos de espírito missionário (que são a mulher-organização – simbolismo que significa tradicionalmente que a figura de Eva simboliza a figura da igreja(qual, não sabemos) que é esposa de Cristo- isto é, a falsa religião que recebe a sua autoridade do anjo pecador, persegue a verdadeira religião que é a mulher, a igreja instituição que ama a Deus.
O descendente da mulher é Cristo, que foi mordido no calcanhar quando foi crucificado pelos poderes corruptos terrenos, e foi mordido no calcanhar, porque foi um «ferimento» quase sem importância, ao passo que pisará, esmagará a cabeça da serpente. Cristo acabará com o autor do pecado original, onde reside o atrito bíblico sobre a questão da autoria, e da autoridade. (Ver Revelação capítulos 18 e 19)
O descendente humano da serpente é a falsa religião, a política e a alta economia.
Antes de prosseguir, é necessário advertir que a nossa interpretação não está vinculada a nenhuma confissão, a sua referência aplica-se apenas ao texto bíblico.
Inimizade entre a serpente e a Igreja(mulher), e entre os descendentes de ambos.
O descendente da mulher é Cristo e os 144.000 seguidores ungidos, onde Cristo triunfará esmagando a cabeça da serpente.
Enclausurados os caídos, pode o reino milenar começar. Até ao fim deste toda a Terra tenderá a parecer-se com o jardim Éden. São literalmente mil anos, esta designação aparece três vezes na Revelação 20:5-7. O dia do julgamento, dura mil anos, pois um dia para Deus, são mil anos para os homens. Nestes mil anos serão ressuscitados todos os seres humanos que já nasceram e morreram na Terra, menos aqueles que cometeram pecados contra o Espírito Santo. Após esses mil anos os prisioneiros do abismo serão soltos para o teste final de personalidade do homem, fomentando ou tentando fomentar a guerra entre os humanos que durante algum tempo conseguiram a harmonia, e tentarão derrubar Nova Jerusalém. Mas esta tentativa será aniquilada e com ela os decaídos desobedientes. (Ver Revelação 20:9b-10a)
Os que passarem no teste de fé, passarão a ser habitados com o Espírito de Deus, tal como Adão o foi, e Deus voltará a viver entre os homens.
«Eu sou o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim;(...)» (Ver Revelação 21:5,6a)
A utilidade da HF não é só satisfazer a curiosidade sobre o Futuro. As coisas boas que estão para vir são engodo para a concretização do propósito divino.
«Por isso, quer a Providência Divina que as sentenças estejam escritas antes da execução, e que haja quem as interprete antes do sucesso.»ii
Vieira foi missionário, talvez seja um dos 144.000 ungidos. Quem sabe?
Tentámos aqui fazer uma sinopse arqueológica entre algumas noções que se destacaram na leitura da obra inacabada do jesuíta. Poderíamos ter seguido o caminho comum, levantando também a questão do quinto império e do lugar que Vieira acreditava ser o dos portugueses na história mundial e escatológica. A tarefa da pregação, tal como está referida no Livro, desempenhou um papel vital na difusão religiosa por todo mundo. É um fenómeno espiritual que não pode ser reduzido a uma curiosidade de uma confissão. E esse grandioso fenómeno, foi participado pelos portugueses. Somos um povo como qualquer outro, o que nos levou para os Descobrimentos não foi apenas a falta de prata na Europa e o engodo do ouro de Ceuta, e as especiarias. O homem não se move só por talentos de prata, é certo que levámos os vícios, mas também as virtudes, da nossa igreja e que também causariam dissabores ao próprio Vieira, a fé também moveu montanhas de homens, e homens montanhas de fé como por exemplo Vieira. Impregnados com o espírito missionário temos milhares a sair deste pequeno berço, para talvez morrer no imenso sarcófago do mundo, missionários que talvez como Vieira, aprendiam a língua dos nativos, iam de facto até eles.
«E este grande Eufrates é aquele grande mar, pelo qual os Portugueses (maior façanha e ventura que a do outro Ciro) fizeram a passagem a pé enxuto nas suas grandes naus da Índia, para levarem nelas a Fé ao Oriente e trazerem tantos reis orientais à obediência e sujeição da Igreja.»iii
Na página 235 da edição por nós utilizada, explana-se toda a convicção missionária de Vieira. O diabólico da idolatria é combatido pelos missionários, levando não só o Nome de Deus, mas também e com Ele, a salvação.
Estes homens foram salvar outros. Poderia ser assim o epitáfio dos Descobrimentos.
Com ele claramente se antevê o pejo que Vieira tinha da escravatura. A salvação não está num convés de um navio negreiro, nem num cabresto no pescoço dos nativos.
Jesus expulsou os vendilhões do templo, Vieira se pudesse (vontade não lhe devia faltar) expulsaria o comércio de estar misturado com a evangelização.

As teses que procurámos expor passaram pela exposição do carácter de compromisso além utópico desta obra de Vieira. De compromisso por causa do modo como o tempo é exposto, e como é feito o referente à actualidade, diferente do referente da utopia.
A utopia e a exegese do Apocalipse foi por nós justificada na intenção de mostrar como o espaço e o tempo são diluídos, sendo essa diluição a diferença (além do referente «não terreno» do livro do Padre António Vieira) entre utopia e a HF.
A profecia é o elemento que opera uma fuga fugidia, foge do tempo e espaço objectivo para a ele retornar.
Um dos motivos da grande originalidade de Vieira, está na forma literária utilizada, que surge fazendo a fusão das partes do tempo criando uma utopia sem referente. E o paradoxo habita esta noção se considerarmos que com a dissolução do tempo deixa de ser utopia, sendo uma exposição no essencial utópica.
A esfericidade do tempo, e a profecia como dissolvente espacial, foram as pedras de toque para a compreensão do futuro delineado por Deus, e a cujas profecias, Vieira tantas vezes recorre, para explicar os seus pontos de vista, e para deixar a reafirmação da mensagem da Bíblia: o desfecho trará tempos melhores

Conclusão

Tentando fugir do lugar comum que é enaltecer elementos da alma histórica nacional, por reacção a outras modas que permeiam o espírito presente, tentámos expor algumas considerações sobre uma obra capital do pensamento de um autor que se afigura como dos mais originais a utilizar a língua de Camões.
Grande exegeta das Escrituras Sagradas, Vieira, a nosso ver, mistura com toque sóbrio de génio a utopia, ou a leve brisa utópica que medeia entre o fim do Renascimento e a alvorada da época Moderna, com a revelação e fenómeno da fé...ao mesmo tempo que se transforma em testemunha da revolução humana dos Descobrimentos.
Em épocas de grandes mudanças germinam as grandes obras. Esta afirmação não é um encómio forçado, mas tão só a constatação do valor de um autor mais desprezado por pseudo ateísmo ignorante que por pouca importância ou originalidade das suas ideias, teve a sorte de nascer no grande Portugal de Quinhentos, azar de ter convicções antropológicas e teológicas, que mesmo depois de morto ainda parecem persegui-lo.
Parece existir uma estreita ligação entre os homens e as voltas violentas da história, os homens fazem a história e ela a eles.
São Tomás Morus no seu clássico Utopia, alude às viagens de Platão, não a Siracusa, mas nos horizontes do espírito. Esta alusão sai da boca de um personagem que é um marinheiro português.
Esta pequena comparação não é uma mera curiosidade, é que na História do Futuro o u-topos e o u-cronos não acontecem. E não acontecem devido a uma diferença muito importante e que é a posição fulcral da revelação no plano da obra.
Se o denominador comum da República de Platão, ou da Utopia de Morus parece ser um télos, isto é, uma construção que se quer paradigmática ou crítica, o desfolhar da HF remete-nos não para criações fictícias, pois o carácter profético tem a sua razão de ser na verdade e certeza dos acontecimentos do porvir, mas para uma prova, milagre que é a revelação, a «mão» de Deus nas coisas dos homens que não desloca nem projecta a realidade, nem metaforiza essa mesma realidade na sua síntese espácio-temporal.
Como podemos então conceder a Vieira, laivos inspiradores de utopismo, isto é, se entender-mos a utopia como um sistema de encarceramento do tempo e do espaço, remetendo para um lugar imaginário, ou melhor, ficcionado, em menor ou maior grau?
A interpretação bíblica que serve de pano de fundo ao conteúdo é a resposta.
Podemos fazer a distinção entre discurso profético ou utópico, mas as únicas diferenças entre ambos são a necessidade e a possibilidade, isto é, enquanto no discurso profético é necessário que exista um acordo entre o profetizado (antecipado) e o que ulteriormente acontece. A raiz do discurso utópico é a da possibilidade, pois ao criar um «reflexo» existe sempre a possibilidade ou desejo de concretização, ou a possibilidade de resolução de problemas, caso se opte,, caso se olhe...o eterno «se».
O autor viaja não na razão, mas na fé.
Neste livro, Vieira assume o tratamento do tema do iminente.
Iminência de uma situação, de uma realidade.
O carácter de necessidade da efectivação dos acontecimentos futuros, coloca, a nosso ver, o autor, o relator, como que numa situação intemporal, porque nos três estados temporais ao mesmo tempo, Escrituras(passado), Bandarra e acontecimentos presentes(presente), e descrição de acontecimentos futuros no futuro.
Ao invés de referirmos aqui uma ucronia, referimos uma pancronia que dissolve o tempo (como sucessão contínua de instantes) utilizando como esteira o horizonte do pensamento.

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