Sunday, July 22, 2007

Miguel Bombarda : Realidade e Sexualidade – alguns tópicos

A partir da obra O delírio do ciúme
Alturas houve na nossa história, em que a menoridade cultural foi por breves lampejos ultrapassada pelo progresso da ciência. Portugal teve uma dessas cintilações na primeira parte do século XX, consistindo essa cintilação na paridade e até pioneirismo no ramo da psiquiatria, chegando até ao nosso país um Prémio Nobel. Psiquiatria que é uma das ciências do espírito, da mente. Miguel Bombarda, Júlio de Matos, Sobral Cid e outros, conferiram um dinamismo à nossa cultura que infelizmente não chegou até hoje.
Focámos a nossa atenção em Miguel Bombarda.
Tentamos aqui interpretar o famoso alienista português á luz ( e contemporâneo) dos dois maiores inovadores , e vultos culturais na história da psiquiatria e psicologia : Freud e Reich .
O primeiro devido à sua teoria relativa às pulsões , ao papel do «imotivado» , mais sensivelmente na questão da realidade e do seu mecanismo psicológico no indivíduo .
O segundo devido não só às suas descobertas práticas , mas também devido à radicalização da teoria freudiana concernente à sexualidade , da qual fizemos uso para tentar mostrar como se pode passar para a psicose através da aparente e «normal» neurose .
Miguel Bombarda , Freud , Reich ...
Num mesmo trabalho três autores tão díspares , quanto , a meu ver , polémicos , pode retirar a esta reflexão o cariz da coerência necessária , mas o que se tentou foi esquecer as diferenças e abordar os pontos de contacto . Porquê ?
A par deste factor tentou-se compreender o processo que comporta formas pessoais de sofrimento.
Interpretou-se uma tentativa de aproximação entre a realidade e a sexualidade , que estão de facto muito próximas no delírio do ciúme .
Facto que releva da reconstituição genérica da representação do louco enquanto um modo da condição humana , e enquanto o outro da razão , e quem sabe o outro da realidade .
«O cerebro não é um orgão formado de partes sempre similares – um figado , um pulmão , cujos elementos apenas se relacionam por uma vascularisação e por uma innervação comuns .
Um fragmento de rim poderá ser subtrahido á funcção sem prejuízo da porção restante , porque as unidades anatomicas que o constituem funccionam cada uma sobre si ; o mais que poderá haver será uma hyperactividade da funcção .
No cerebro , o contrario ; uma parte doente reflecte-se logo em todas as porções primeiro sãs , pela infinidade de ligações de uma com as outras . As que escaparam à lesão primitiva nem por isso deixam de ser lesadas no seu funccionamento , isto é , a integridade dos influxos vindos das porções originariamente doentes .»i
A psicose , como o vírus , alastra-se a todo o cérebro «infectando-o » , e se algumas funções permanecem inalteradas , no seu conjunto o funcionamento é alterado , pois o equilíbrio é sensível a quaisquer alterações , repercutindo-se imediatamente .
Neuroses decorrentes de pressões impostas externamente que vão gerar tensões internas ao longo da vida do ser , sobrecarregam o sistema nervoso central possibilitando por vezes a eclosão de psicoses . Os mais fortes podem aguentar as pressões , mas não evitam certas neuroses .
Mas mais uma vez se coloca o problema da pressão psicológica exercida que vai danificar a matéria , causando o desarranjo .
As pressões mais intensas são a nível sexual , que mal grado o nosso , submetem , cingem e cindem o nosso mundo a duas realidades ... o que nós queremos , e aquilo que achamos que temos de fazer perante os outros .
Miguel Bombarda e o seu O Delírio do Ciúmeii

« Fascinante » é a palavra que se pode aplicar ao modo como Miguel Bombarda aborda e coloca o problema do real , e do seu oposto (neste caso vamos denotá-lo como « fantasia » , embora isto seja discutível , não vai ser aqui discutido ) , na manifestação singular do delírio do ciúme .
Comecemos por analisar o que diz Miguel Bombarda .
O delírio é uma forma de manifestação de alienação mental , e a alienação mental como o próprio nome indica é algo relativo à mente que está deslocado , à margem , fora do caminho , a – normal .
Das diversas formas de delírio , a que mais nos interessa aqui , é a que se aplica à relação amorosa , passional , presente ao longo dos milénios da civilização , e porque é tão actual como sempre foi , além do que ...quem não sofre ao longo da vida de uns ataques mais ou menos violentos , mais ou menos esporádicos de ciúmes ? É tão normal uma birrinha de ciúmes que ninguém se atreveria a enclausurar física ou quimicamente dois amantes devido a um ruborizar de calor no peito ante a ideia de se ser preterido pelo «objecto» de amor em prol de um outro .
As conotações sexuais das ideias delirantes são habituais , e a noção de infidelidade do cônjuge provoca uma alteração da capacidade crítica em relação à realidade «normal» , uma vez que o «doente» interpretará a realidade conforme as suas suspeitas , de tal modo que a sua interpretação se torna a verdade , e por todos os meios tenta prová-la , contra uma conspiração que visa enganá-lo , isto é , o duplo movimento de desconfiar dos outros que o tentam enganar , e arquitectar os seus próprios planos para confirmar as suas próprias suspeitas .
Tudo aquilo que o rodeia parece pactuar com o seu grande receio .
Alucinações do ouvido e da vista , ideia de perseguição , tudo mostra a alienação do espírito .
Todos os olhos parecem espiá-lo e gozá-lo , fazendo-o o centro de uma grande tragédia , e infelizmente de uma grande infelicidade .
Esta pressão só vem complicar ainda mais o problema , e uma maneira de podermos avaliar este ciclo vicioso é o de tentar comparar os efeitos destrutivos de exposição perante os outros que levam quer futebolistas ou estrelas de cinema à margem do abismo , eles e elas tão normais como todos «nós» , mas que não aguentam a destruição da sua privacidade , nem o olhar a maior parte das vezes isento de admiração . dos seus semelhantes . É destrutivo .
Como se explica o carinho , a obsessão por algo tão ténue como uma suspeita ?
Será a grande vontade de provar que não se é enganado , que ninguém «nos come as papas na careca » ?
Será uma tentativa desesperada de tentar entender o porquê da não frontalidade do amante ?
Será uma vingança perante o sentir-se alvo de chacota perante o mundo ?
E já aqui nestas hipóteses de resposta encontramos hipóteses de trabalho .
Este alvo de chacota perante o mundo não é um sujeito contraposto a uma sociedade , cultura , e código moral ( e de conduta )?
Este carinho pela verdade , pela suspeita , não é reflexo do mecanismo freudiano da realidade ? Da força de pulsão de conservação do eu , que origina a instância do aparelho psíquico responsável simultaneamente pela regulação do equilíbrio interno do organismo e pela adaptação social ? Poder-se-á dizer que o principio da realidade trabalha para a conservação do eu , e que não pode corroe-lo através do ciúme .Mas se atentarmos no delírio do ciúme o eu é preterido em função de um outro , ficando desvalorizado , e o ego assim não se pode conservar, ou seja , este mesmo principio zela pela harmonia das pulsões individuais para o prazer e para o seu bem estar social , que é exactamente aquilo que o «doente» não tem quando vê todas as pessoas fazerem pouco dele , e assim , se destrói o eu pelo pouco valor que o «doente» reconhece nos outros para consigo , e por outro lado vai tentar provar aos outros e a si mesmo que não pode ser enganado , ou que não é assim tão «parvo» , o que assenta perfeitamente ao facto de que aquele que sofre do delírio do ciúme se sente no meio de uma conspiração bem urdida , tentando assim desmascará-la . É uma possibilidade de resposta . Mas voltemos ao nosso autor .
A interpretação do real torna-se doentiamente tendenciosa .
Esta mudança pode provir de modificações sexuais , tal como a menopausa , ou a impotência (especialmente)masculina , não deixando de ter sempre por trás o problema do valor quer físico quer intelectual na relação que o sujeito tem para consigo , e na relação que julga que os outros têm com ele .
Este desfasamento também pode ocorrer nos epilépticos .
Os epilépticos sofrem de « crises sensoriais em que pode haver , quer diminuição ou falta da actividade sensoperceptiva , quer , ao contrário , alucinações e outras falsas percepções. O tipo destas varia com a área cerebral atingida e em que se podem verificar alterações electroencefalográficas características ».iii
Mas se nos ataques cessam , como explicar a alucinação , o delírio ?
É a pergunta que o autor faz . Distingue estes dois casos , o de alteração de ordem sexual , e a patologia de nome epilepsia , pois são as excepções onde se pode estabelecer uma relação entre algo danificado ou fruto de uma alteração de ordem física , e que na época carecia de estudos comprovativos .
Assim o teor de interesse aumenta quando se estabelece que tudo o que resta fora desses dois casos ( menopausa e epilepsia ) é mais provável que não tenha causa num dano físico , mas sim sob outro tipo de influência . Miguel Bombarda professava o materialismo . ( Assim , as patologias advinham de «desequilíbrios» , ou danos na matéria . É desse modo que ao longo do tempo se tem mapeado o cérebro e as suas zonas funcionais , a saber , através da análise de lesões cerebrais e dos consequentes efeitos . Se Bombarda afirma a predisposição de certos carácteres para certo tipo de patologias , afirma também que diversas causas existem para despoletar as patologias , nomeadamente as menos graves como as neuroses . Se as psicoses são suficientemente agudas do ponto de vista sintomático , e graves do ponto de vista pessoal para o doente , as neuroses , mais comuns , despertam outro tipo de questões ... Como reflectir no caso de doentes que de um momento para o outro passam a manifestar os sintomas patológicos , onde anteriormente só albergavam «normalidade » ?
A questão é : Nascemos psicóticos ? Se não , como adoecemos ?
Somos neuróticos ? Como nos tornámos ?
De qualquer modo o mais importante é o que o autor aponta , no que concerne ao materialismo . Se até o pensamento é um combinado de factos ocorridos na matéria , pode o mesmo pensamento desequilibrar o funcionamento , como é o caso das neuroses ? É tão só o problema antigo da dualidade alma / corpo que aqui se apresenta .
Tudo parece indicar para a tal predisposição de que falámos , tal como existem pessoas com maior tendência para engordar , ou ter diabetes , existem personalidades mais predispostas a sofrerem deste ou daquele tipo de patologia . A lesão provem do pensamento ou o pensamento provem da lesão ? )
Mas voltamos a frisar a dificuldade em detectar o «paciente» afectado por esta psicose , uma vez que grande parte da população , por factores diversos está afectada por neuroses de efeito semelhante , e quem não carrega sempre consigo uma desconfiança ainda que passageira .
Na neurose o equilíbrio interior do neurótico está alterado mas , ao contrário do que acontece nas psicoses o EU , nas suas relações com a realidade , está pouco perturbado , embora a conduta do doente o esteja , por vezes , muito.
Não só o delírio do ciúme pode não passar de uma menos «letal» neurose , como é muito difícil de detectar , passando a expressão , será o mesmo que encontrar agulha em palheiro . Mas se conseguirmos uma plataforma segura que consiga fazer a distinção , seremos capazes de diferenciar entre a neurose generalizada e a psicose .
Pormenores podem ser fundamentais no rastreio da doença .
Mesmo na neurose , os traços característicos da personalidade podem ser confundidos com algum sintoma , como por exemplo o facto de eu ser minucioso por natureza poder indicar falsamente ( ou não ?) um desarranjo qualquer ...
Existem « (...) temperamentos originariamente desconfiados , azedos , maldosos , que nas acções dos outros não vêem senão o mal , nos actos mais insignificantes não procuram senão descobrir motivos tenebrosos ou fitos depravados .»iv
Não bastando já estas dificuldades naturais , ainda se complica o facto de o homem ser um animal social em que para o nascimento da desconfiança , basta um desencontro , um falso testemunho , uma aparência , um boato .
Embora doenças , (estas inclinações do carácter para dar demasiada importância ao que outros dizem , ou carácteres que são naturalmente (?) desconfiados ) , não são ainda patologias , mas terreno propício para o desenvolvimento do delírio do ciúme .
A desconfiança , a importância dada ao juízo alheio , as tentativas de confirmação da suspeita , são já sinais indicadores que algo não está a funcionar «bem» .
A questão da realidade é aqui fulcral . Quando o sujeito se convence da realidade da sua ideia fixa e tenta por todos os modos confirmá-la ( deixando o papel de perseguido por esta mesma ideia ) entra realmente (ironia outra vez ... ) no terreno da paranóia , do delírio .
Está inerente então que a distinção entre a normal doença , e a anormal patologia (porque menos comum ) se encontra na capacidade de discernir o que pertence à esfera do sujeito , da sua interpretação , e o que pertence à esfera do objecto .
Isto é , «(...) as faculdades de critério psychico que se manteem no caso normal , embora abaladas , mas que no caso pathologico de todo se perderam . » v
Num caso a interpretação feita das coisas circundantes levam o sujeito a admitir a suspeita , isto é , uma possibilidade de verdade , no outro caso , a interpretação feita , a suspeita é a verdade , e o mundo gira e é moldado à forma da suspeita , em vez de ser a interpretação moldada ao mundo .
Assim sendo , torna-se como já referimos , numa ideia fixa .
O que é isto que denotamos como fixidez da ideia ?
É tão só uma ideia que se impregna em toda a mentalidade do doente .
«Esta sempre presente ao espírito e por isso mesmo vem coexistir com todas as outras ideias que lá possam nascer , vindas das percepções actuaes ou dos factos da memória .»vi
Assim , as alucinações , deformações tendenciosas que daí nascem , são devidas a quê ?
Apenas devido à perda da capacidade critica ?
Devido ao facto de o doente acreditar tanto em si e nas suas capacidades (que originaram a desconfiança ) que tenta por todos os modos provar a si e aos outros que tem razão , que não está louco ?
Será que a capacidade de admitir o erro , o engano , o medo de ser enganado ( questão da realidade ) , é o cerne da entrega de corpo e alma do sujeito a uma ideia fixa ?
« Não há possibilidade de que o doente reconheça a falsidade d’uma interpretação , a futilidade d’uma prova , a possibilidade d’um erro , ou a phantasia d’uma concepção. Assim se apresentam sempre os paranoicos . »vii
Como o autor afirma , a integridade da reflexão está na capacidade de discernir e visualizar a possibilidade de outra interpretação , isto é ( em palavras do próprio autor ) a moderação na visualização das consequências e ordenação das ideias são os traços fundamentais da reflexão , posto que se estes traços desaparecem o espírito não pode «(...) concluir pela inanidade de certas das suas conclusões.» viii perdendo a reflexão a sua integridade .
Não é uma lógica intacta que o delírio desvia , é uma lógica delirante , fora do real , que opera no paranóico.
«O espirito inteiro do paranoico esta lesado . Ou antes , se a memória se conserva bem , se a percepção de factos correntes se faz de modo normal , se as idéias se associam e se movem como physiologicamente em tudo quanto se não refere ás idéias delirantes e n’estas , admittido o ponto de partida , as faculdades dominadoras abalaram-se , - a logica , o criterio , a reflexão perderam-se e apenas na apparencia apresentam o aspecto da normalidade .»ix
Como já foi dito anteriormente , o paciente parece acarinhar o seu delírio . Sente-se bem com ele .

Se interpretar-mos este facto à luz de Reich e da sua teoria , especialmente no âmbito sexual , é fácil de entender o prazer daí recorrente , uma vez que segundo Reich , pensar no momento de prazer descarrega um pouco de tensão e promete um pouco de prazer para a concretização do acto . ix
Se por outro lado atentarmos que aquele que sofre o delírio , não o vê como tal , e se o delírio é encarado como tal , o ter razão , o lutar para desmascarar a conspiração , desaparecem mostrando cruamente ao eu que vive enganado ... mas isto é subjectivo , uma vez que eu que escrevo agora consigo (?) discernir essa possibilidade , suponho que um alienado não .
Aqui discordamos de Miguel Bombarda quando afirma que o apego à fantasia delirante é fruto e prova da ausência de critério e lógica «(...)que está por baixo de todos os delirios systematizados . »x ; e discordo porque é compreensível a atitude de defesa do paciente a quem o delírio arrasta emocionalmente , se lhe retiramos o delírio , que é tudo o que (doentiamente ) tem , o eu entra em colapso . Assim o eu defende-se da possibilidade de derrocada de tudo aquilo em que se inscreve . A remissão recorrente a Nietzsche não deixa de ser necessária .
«As idéias encadeiam-se , associam-se , a sua approximação com outras actuais ou do fundo memorativo estabelece-se regularmente , mas todos estes encadeamentos , aproximações e associações não se effectuam como normalmente por elos successivos , por pontos de contacto exactos , mas antes com saltos bruscos , interrupções violentas , approximações forçadas . (...)Quer dizer , o elevado criterio que preside à reflexão , as faculdades criticas , estão gravemente affectadas . O mecanismo geral da reflexão segue as regras do espirito sadio , mas os elementos que a elle vão ser submetidos apresentam-se falsificados ; d’aqui a desordem e a precipitação na associação em vez da ordem e da moderação que constituem os caracteres principaes d’uma reflexão normal .»xi
A questão do real faz não só parte da sanidade , como do delírio , pois a ideia delirante corresponde a algo de possível que se apresenta ao alienado como intencionalmente encapotado , ou naturalmente de difícil apreensão , o que dos dois modos resulta no sentimento de revelação , descoberta , de uma verdade de árduo acesso para o paciente .
O que é essencial para o paciente não é a verdade , mas a sua verdade , o seu processo mental , de tal modo que (...)o objecto do delírio é alguma coisa de accessorio nos paranoicos . O mal está na lesão do cerebro .»xii ; ficamos com a sensação que o sujeito se defende , e não é só pelo facto de querer mostrar que é ele que tem razão , pois se assim fosse , estaria ansioso para desmascarar a charada . Mas o sujeito , quer por sofrer da patologia , quer por outro se empregar a defende-la , dá-nos a sensação de Ter alguma satisfação , algum prazer com o arrastar e persistência da situação . Como Miguel Bombarda também diz . Mas o que Miguel Bombarda não diz , e essa é a tese de um dos autores deste trabalho , é que esse prazer «patológico» pode provir de um certo tipo de voyerismo que pode ser comprovado pelo gosto em arrastar a situação adiando sempre o desfecho (pelo menos um desfecho que não acabe com um objecto cortante em direcção ao pescoço de outrém ) de evaporação da ilusão. Quase que somos levados a dizer que o doente necessita da ilusão . Além de arrastar a situação , podemos sustentar esta tese com o facto único entre as paranóias , de que aquele que sofre deste tipo de patologias não se inibe minimamente de falar delas . Muito pelo contrário .
Indo ao ponto do pormenor , e da repetição , o doente parece ter prazer em exibir toda a situação .
Temos tentado ao longo desta segunda parte expor alguns tópicos de Miguel Bombarda em relação à realidade e à nossa actividade reguladora da mesma , chegando ao desfecho que a perda da nossa capacidade critica , da faculdade de ajuizar perspectivisticamente nos faz entrar no delírio , no qual não perdemos a relação com a realidade , pois o delírio nos transporta para a realidade na qual quem dele sofre se inscreve completamente , mas perdemos a relação com a possibilidade que temos de reflectir sobre ela.
Levantámos também a questão de qual a origem das lesões que levam a reacções psicóticas e neuróticas .
Assim passamos ao tópico seguinte , o da sexualidade , em que com a ajuda de Reich , se vão levantar algumas hipóteses de reflexão .
Comecemos por repetir algo já dito anteriormente ...
As conotações sexuais das ideias delirantes são habituais , e a noção de infidelidade do cônjuge provoca uma alteração da capacidade crítica em relação à realidade «normal» , uma vez que o «doente» interpretará a realidade conforme as suas suspeitas , de tal modo que a sua interpretação se torna a verdade , e por todos os meios tenta prová-la , contra uma conspiração que visa enganá-lo , isto é , o duplo movimento de desconfiar dos outros que o tentam enganar , e arquitectar os seus próprios planos para confirmar as suas próprias suspeitas .
Estamos a tratar o delírio do ciúme , que tantos poemas originou , e que tantas almas fez expirar .
A neurose é terreno propício para o ciúme . E o aumento gradual do ciúme é um passo em frente para o delírio .
Que mecanismo é este da neurose , como actua ?
O sentimento de posse , a insegurança , o medo de falhar , resumindo , a ansiosidade é o motivo mais importante para o despoletar de uma situação de ciúme . A questão do valor pessoal , do capricho , da crença preconceituosa de aglutinação do outro (bem ao jeito da definição de amor autofagista e canibal de Sartre ) e outros jogos ou mecanismos psicológicos que não nos interessa aqui discutir , são causas de mal estar nos amantes , principalmente a coisas na experiência anterior que vai determinar , regra geral , o comportamento ulterior . Casos impressionantes como aquele da senhora que só conseguia prazer sexual se se masturbasse com a lâmina de uma faca , relatado por Reich , e desvendado pelo mesmo quando remonta até ao primeiro momento de prazer da senhora (então menina ) descoberto pela mãe que logo lhe arremessa com uma faca que por pouco não a atinge e que fica espetada com a ponta no soalho , fazem-nos a um mesmo tempo achar interessante e dramático o assunto .
A nível das inibições , (neste caso culturais ) também Foucault denota na sua História da Sexualidade a mudança operada da época das luzes , para o regime vitoriano através da instauração de valores e por vezes de reprimendas , fora do campo sexual , dentro do campo do poder .
Comecemos pela questão do indivíduo .
Reich na senda de Freud , advoga um sistema «fechado» a nível energético , não a nível de influências .
O instinto do acto sexual sugere a necessidade de uma tensão agradável , único entre todos os instintos , que tende para o prazer e não para a fuga à dor .
O instinto é o aspecto motor do prazer . Na entrega , à volúpia , às sensações , ao desejo , o motor desse desejo é o prazer , na medida em que se recorda um prazer anterior , que se deseja repetir .
Convém fazer a clara distinção entre impulso e instinto . Um instinto tem muitos impulsos . Consequentemente o impulso não é um movimento de A B.
È o próprio motor do prazer na medida em que impulsiona para o prazer , através da lembrança de uma memória , de uma acção ou de um prazer experienciado previamente .
Mas que não se pense que somos marionetas dos nossos instintos . As nossas percepções não são meras experiências passivas sem actividade por parte do ego .
É aqui que reside o conceito de potência orgástica .
Porque um estímulo igual em certa zona , em dois indivíduos diferentes produz sensações diferentes , uma das explicações passa pelo facto de que a «atitude» para com o estímulo é extremamente importante , e esta «atitude» é a base da diferenciação entre o prazer completamente orgástico e as sensações puramente tácteis , isto é , entre o prazer completamente orgástico e as sensações puramente tácteis .
Denomino esta «atitude» como a entrega .
O impulso é já no caso sexual , uma pequena forma de prazer , prometendo um clímax .
Do grau de entrega de cada pessoa aos estímulos , depende directamente a intensidade da sensação .
A um e mesmo tempo , o componente motor do prazer è experienciado passivamente e a sensação è activamente percepcionada.
Que dizer de um alienado que se entrega completamente ao seu delírio ?
O instinto e as hormonas , por vezes parecem não nos fazer pensar em mais nada .
Referimo-nos aqui ao manancial de sensações que é o acto sexual .
Estes pensamentos , quando fantasias , não são actividade aleatória sem utilidade .
Fantasiar impele para a concretização : a) mostrando um certo prazer na possibilidade de concretização ( memória ou sugestão )
b)maior desprazer no caso de frustração ou não concretização .
Fantasiar gera tensão , e descarrega uma pequena quantidade de excitação sexual .
Pequena quantidade essa que é uma «gratificação» , «promessa» de um prazer maior .
A promessa de prazer subjuga o desprazer inerente à «grande tensão».
Que dizer de um alienado que defende o seu delírio , e tem um certo prazer nele ?
Segundo Freud , o impulso , a necessidade , era determinado pela quantidade de excitação (libido) . Sendo o prazer a natureza do impulso , é o prazer uma qualidade psíquica . Se é uma qualidade psíquica , como se pode falar num factor quantitativo ?
O que se chama de prazer mais intenso é tão só a entrega maior por parte do sujeito ao prazer , aos estímulos . Uma atitude diferente para com os estímulos sensoriais ...que é o que penso que o ser que padece de um delírio do ciúme tem , isto é , como todo o seu ser está absorvido e se inscreve na sua fantasia ( e como sabemos que o homem reage especialmente aos estímulos visuais ) está aberto ao prazer , prazer que de facto retira da visualização da sua desconfiança , e até mesmo das perseguições ...Ainda para mais numa sociedade que tolera os devaneios passionais ...Obviamente devido ao VALOR que a instituição familiar possui no seio dessa mesma sociedade ; e a comportamentos que ameacem a sua estrutura , como o adultério ,se defende indirectamente através dos indivíduos incutindo-lhes sentimentos de abominação à TRAIÇÃO que lhes é feita .
O acto de desejar tem de ser encarado como vindo de uma instância muito profunda , vindo do ser , do todo do ser humano .
Além do mais , no doente psicótico , acha-se uma maior visibilidade das ideias sexuais que nos outros são cuidadosamente escondidas ou apenas metade admitidas .
O que nos «normais» é ocultado , a nível de fantasias e comportamentos sexuais desviantes , nos psicóticos cerca a sua consciência .
Os desvios inundam a consciência interior , e a estranha situação interior desorienta o indivíduo provocando ansiedade . Assistimos a um conflito , não só no psicótico , mas especialmente , no «normal» , em que existe um conflito entre o mundo interior e o mundo exterior , entre sujeito e mundo , entre sujeito e sociedade .
O sexo está tão presente e é tão camuflado que cria conflitos psicológicos .
« A person who as allowed prohibited sexuality , while retaining his defense against it , must begin to sense the outer world as strange . The world , too , for its part , labels such a person a freak and excludes him from its regimented ranks . Indeed , the world thrusts sexual sensations upon the psychotic patient so forcefully that he has to become estranged from usual thinking and living . In turn , he is often clearly aware of the sxual hypocrisy of his environment . Hence , he ascribes to the physician or to his own relatives what he himself directly feels . And what he experiences is reality – not fantasies about reality . People are «polymorphously perverse» and so are their morality and their institutions. xiii
O neurótico experiencia a vital biologia do corpo , mas não pode pactuar com ela , antes , é confundido por ela e começa a concebê-la em termos de perversa , o que por exemplo se vai reflectir em termos na linguagem . Termos como «f...r» , «comer» , além de feios , denotam uma atitude perversa para com o sexo , mas generalizada e até certo ponto aceite .
A neurose é uma doença de massas , e as perturbações das funções genitais sexuais , é uma das causas , motivos , mais frequentes . Mas não ocorre por igual nas massas .
Os que estão bem socialmente (economicamente) , não são em regra socialmente agressivos ou perigosos , ao contrário dos que estão mal na escala social . Será devido à revolta contra a dureza da vida em contraste com os outros que «vivem bem »? De qualquer forma o resultado desta tensão faz com que as barreiras morais que inibem , sejam destruídas e os impulsos perversos e criminais clamem por realização , o que significa que as massas pobres economicamente falando , estão mais expostas ao perigo da neurose , que por sua vez favorece a manifestação das psicoses em indivíduos , que embora predispostos , poderiam não desenvolver a patologia em ambiente diferente .
O que nos leva a retomar um problema já exposto , o da relação alma / corpo .
Chegamos então a :
3 concepções básicas na relação entre a esfera SOMÁTICA e a esfera PSÍQUICA :
1)materialismo mecanicista –todas as doenças psíquicas ( ou manifestações ) têm uma causa física;
2)idealismo metafísico – todas as doenças ou manifestações psíquicas só podem ter uma causa psíquica . No modo de pensar religioso , todas as doenças somáticas são também de origem psíquica . Corresponde ao ponto de vista em que «o espírito cria matéria » e não vice-versa ;
3)paralelismo psicofísico – o psíquico e o somático são dois processos paralelos que têm um efeito recíproco um no outro .

Mas toda esta reflexão que partiu de Miguel Bombarda , já vai um pouco longe .
Miguel Bombarda é um materialista . O que corresponde a que para ele as patologias tenham uma causa física . O aumento de tensão por parte da sociedade , dos outros , pode desequilibrar o sistema , é então uma causa física?
Mas o que aqui se tentou fazer foi também apresentar algumas condições em que se favorece o surgir da neurose , e o mecanismo da sua formação .
A questão da atitude para com o sexo também foi focada , uma vez que nem todos como Reich ... «Faço amor com a minha mulher porque a amo e a desejo e não porque tenha um certificado de casamento ou para satisfazer as minhas necessidades sexuais .»



Conclusão :
As conotações sexuais das ideias delirantes são habituais , e a noção de infidelidade do cônjuge provoca uma alteração da capacidade crítica em relação à realidade «normal» , uma vez que o «doente» interpretará a realidade conforme as suas suspeitas , de tal modo que a sua interpretação se torna a verdade , e por todos os meios tenta prová-la , contra uma conspiração que visa enganá-lo , isto é , o duplo movimento de desconfiar dos outros que o tentam enganar , e arquitectar os seus próprios planos para confirmar as suas próprias suspeitas .











Bibliografia:
Bombarda , M. , O Delírio do Ciúme , Medicina Contemporânea , Lisboa , 1896
Athayde,J.C. , Elementos de Psicopatologia 4 ,Fundação Calouste Gulbenkian , Lisboa , 1987
Reich, W ., Escuta Zé Ninguém ! Trad. Maria de Fátima Bivar , Publicações D. Quixote , Lisboa , 1972
Reich, W ., The Function of the Orgasm , Souvenir Press , London , 1999

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