A partir da obra O delírio do ciúme
Alturas houve na nossa história, em que a menoridade cultural foi por breves lampejos ultrapassada pelo progresso da ciência. Portugal teve uma dessas cintilações na primeira parte do século XX, consistindo essa cintilação na paridade e até pioneirismo no ramo da psiquiatria, chegando até ao nosso país um Prémio Nobel. Psiquiatria que é uma das ciências do espírito, da mente. Miguel Bombarda, Júlio de Matos, Sobral Cid e outros, conferiram um dinamismo à nossa cultura que infelizmente não chegou até hoje.
Focámos a nossa atenção em Miguel Bombarda.
Tentamos aqui interpretar o famoso alienista português á luz ( e contemporâneo) dos dois maiores inovadores , e vultos culturais na história da psiquiatria e psicologia : Freud e Reich .
O primeiro devido à sua teoria relativa às pulsões , ao papel do «imotivado» , mais sensivelmente na questão da realidade e do seu mecanismo psicológico no indivíduo .
O segundo devido não só às suas descobertas práticas , mas também devido à radicalização da teoria freudiana concernente à sexualidade , da qual fizemos uso para tentar mostrar como se pode passar para a psicose através da aparente e «normal» neurose .
Miguel Bombarda , Freud , Reich ...
Num mesmo trabalho três autores tão díspares , quanto , a meu ver , polémicos , pode retirar a esta reflexão o cariz da coerência necessária , mas o que se tentou foi esquecer as diferenças e abordar os pontos de contacto . Porquê ?
A par deste factor tentou-se compreender o processo que comporta formas pessoais de sofrimento.
Interpretou-se uma tentativa de aproximação entre a realidade e a sexualidade , que estão de facto muito próximas no delírio do ciúme .
Facto que releva da reconstituição genérica da representação do louco enquanto um modo da condição humana , e enquanto o outro da razão , e quem sabe o outro da realidade .
«O cerebro não é um orgão formado de partes sempre similares – um figado , um pulmão , cujos elementos apenas se relacionam por uma vascularisação e por uma innervação comuns .
Um fragmento de rim poderá ser subtrahido á funcção sem prejuízo da porção restante , porque as unidades anatomicas que o constituem funccionam cada uma sobre si ; o mais que poderá haver será uma hyperactividade da funcção .
No cerebro , o contrario ; uma parte doente reflecte-se logo em todas as porções primeiro sãs , pela infinidade de ligações de uma com as outras . As que escaparam à lesão primitiva nem por isso deixam de ser lesadas no seu funccionamento , isto é , a integridade dos influxos vindos das porções originariamente doentes .»i
A psicose , como o vírus , alastra-se a todo o cérebro «infectando-o » , e se algumas funções permanecem inalteradas , no seu conjunto o funcionamento é alterado , pois o equilíbrio é sensível a quaisquer alterações , repercutindo-se imediatamente .
Neuroses decorrentes de pressões impostas externamente que vão gerar tensões internas ao longo da vida do ser , sobrecarregam o sistema nervoso central possibilitando por vezes a eclosão de psicoses . Os mais fortes podem aguentar as pressões , mas não evitam certas neuroses .
Mas mais uma vez se coloca o problema da pressão psicológica exercida que vai danificar a matéria , causando o desarranjo .
As pressões mais intensas são a nível sexual , que mal grado o nosso , submetem , cingem e cindem o nosso mundo a duas realidades ... o que nós queremos , e aquilo que achamos que temos de fazer perante os outros .
Miguel Bombarda e o seu O Delírio do Ciúmeii
« Fascinante » é a palavra que se pode aplicar ao modo como Miguel Bombarda aborda e coloca o problema do real , e do seu oposto (neste caso vamos denotá-lo como « fantasia » , embora isto seja discutível , não vai ser aqui discutido ) , na manifestação singular do delírio do ciúme .
Comecemos por analisar o que diz Miguel Bombarda .
O delírio é uma forma de manifestação de alienação mental , e a alienação mental como o próprio nome indica é algo relativo à mente que está deslocado , à margem , fora do caminho , a – normal .
Das diversas formas de delírio , a que mais nos interessa aqui , é a que se aplica à relação amorosa , passional , presente ao longo dos milénios da civilização , e porque é tão actual como sempre foi , além do que ...quem não sofre ao longo da vida de uns ataques mais ou menos violentos , mais ou menos esporádicos de ciúmes ? É tão normal uma birrinha de ciúmes que ninguém se atreveria a enclausurar física ou quimicamente dois amantes devido a um ruborizar de calor no peito ante a ideia de se ser preterido pelo «objecto» de amor em prol de um outro .
As conotações sexuais das ideias delirantes são habituais , e a noção de infidelidade do cônjuge provoca uma alteração da capacidade crítica em relação à realidade «normal» , uma vez que o «doente» interpretará a realidade conforme as suas suspeitas , de tal modo que a sua interpretação se torna a verdade , e por todos os meios tenta prová-la , contra uma conspiração que visa enganá-lo , isto é , o duplo movimento de desconfiar dos outros que o tentam enganar , e arquitectar os seus próprios planos para confirmar as suas próprias suspeitas .
Tudo aquilo que o rodeia parece pactuar com o seu grande receio .
Alucinações do ouvido e da vista , ideia de perseguição , tudo mostra a alienação do espírito .
Todos os olhos parecem espiá-lo e gozá-lo , fazendo-o o centro de uma grande tragédia , e infelizmente de uma grande infelicidade .
Esta pressão só vem complicar ainda mais o problema , e uma maneira de podermos avaliar este ciclo vicioso é o de tentar comparar os efeitos destrutivos de exposição perante os outros que levam quer futebolistas ou estrelas de cinema à margem do abismo , eles e elas tão normais como todos «nós» , mas que não aguentam a destruição da sua privacidade , nem o olhar a maior parte das vezes isento de admiração . dos seus semelhantes . É destrutivo .
Como se explica o carinho , a obsessão por algo tão ténue como uma suspeita ?
Será a grande vontade de provar que não se é enganado , que ninguém «nos come as papas na careca » ?
Será uma tentativa desesperada de tentar entender o porquê da não frontalidade do amante ?
Será uma vingança perante o sentir-se alvo de chacota perante o mundo ?
E já aqui nestas hipóteses de resposta encontramos hipóteses de trabalho .
Este alvo de chacota perante o mundo não é um sujeito contraposto a uma sociedade , cultura , e código moral ( e de conduta )?
Este carinho pela verdade , pela suspeita , não é reflexo do mecanismo freudiano da realidade ? Da força de pulsão de conservação do eu , que origina a instância do aparelho psíquico responsável simultaneamente pela regulação do equilíbrio interno do organismo e pela adaptação social ? Poder-se-á dizer que o principio da realidade trabalha para a conservação do eu , e que não pode corroe-lo através do ciúme .Mas se atentarmos no delírio do ciúme o eu é preterido em função de um outro , ficando desvalorizado , e o ego assim não se pode conservar, ou seja , este mesmo principio zela pela harmonia das pulsões individuais para o prazer e para o seu bem estar social , que é exactamente aquilo que o «doente» não tem quando vê todas as pessoas fazerem pouco dele , e assim , se destrói o eu pelo pouco valor que o «doente» reconhece nos outros para consigo , e por outro lado vai tentar provar aos outros e a si mesmo que não pode ser enganado , ou que não é assim tão «parvo» , o que assenta perfeitamente ao facto de que aquele que sofre do delírio do ciúme se sente no meio de uma conspiração bem urdida , tentando assim desmascará-la . É uma possibilidade de resposta . Mas voltemos ao nosso autor .
A interpretação do real torna-se doentiamente tendenciosa .
Esta mudança pode provir de modificações sexuais , tal como a menopausa , ou a impotência (especialmente)masculina , não deixando de ter sempre por trás o problema do valor quer físico quer intelectual na relação que o sujeito tem para consigo , e na relação que julga que os outros têm com ele .
Este desfasamento também pode ocorrer nos epilépticos .
Os epilépticos sofrem de « crises sensoriais em que pode haver , quer diminuição ou falta da actividade sensoperceptiva , quer , ao contrário , alucinações e outras falsas percepções. O tipo destas varia com a área cerebral atingida e em que se podem verificar alterações electroencefalográficas características ».iii
Mas se nos ataques cessam , como explicar a alucinação , o delírio ?
É a pergunta que o autor faz . Distingue estes dois casos , o de alteração de ordem sexual , e a patologia de nome epilepsia , pois são as excepções onde se pode estabelecer uma relação entre algo danificado ou fruto de uma alteração de ordem física , e que na época carecia de estudos comprovativos .
Assim o teor de interesse aumenta quando se estabelece que tudo o que resta fora desses dois casos ( menopausa e epilepsia ) é mais provável que não tenha causa num dano físico , mas sim sob outro tipo de influência . Miguel Bombarda professava o materialismo . ( Assim , as patologias advinham de «desequilíbrios» , ou danos na matéria . É desse modo que ao longo do tempo se tem mapeado o cérebro e as suas zonas funcionais , a saber , através da análise de lesões cerebrais e dos consequentes efeitos . Se Bombarda afirma a predisposição de certos carácteres para certo tipo de patologias , afirma também que diversas causas existem para despoletar as patologias , nomeadamente as menos graves como as neuroses . Se as psicoses são suficientemente agudas do ponto de vista sintomático , e graves do ponto de vista pessoal para o doente , as neuroses , mais comuns , despertam outro tipo de questões ... Como reflectir no caso de doentes que de um momento para o outro passam a manifestar os sintomas patológicos , onde anteriormente só albergavam «normalidade » ?
A questão é : Nascemos psicóticos ? Se não , como adoecemos ?
Somos neuróticos ? Como nos tornámos ?
De qualquer modo o mais importante é o que o autor aponta , no que concerne ao materialismo . Se até o pensamento é um combinado de factos ocorridos na matéria , pode o mesmo pensamento desequilibrar o funcionamento , como é o caso das neuroses ? É tão só o problema antigo da dualidade alma / corpo que aqui se apresenta .
Tudo parece indicar para a tal predisposição de que falámos , tal como existem pessoas com maior tendência para engordar , ou ter diabetes , existem personalidades mais predispostas a sofrerem deste ou daquele tipo de patologia . A lesão provem do pensamento ou o pensamento provem da lesão ? )
Mas voltamos a frisar a dificuldade em detectar o «paciente» afectado por esta psicose , uma vez que grande parte da população , por factores diversos está afectada por neuroses de efeito semelhante , e quem não carrega sempre consigo uma desconfiança ainda que passageira .
Na neurose o equilíbrio interior do neurótico está alterado mas , ao contrário do que acontece nas psicoses o EU , nas suas relações com a realidade , está pouco perturbado , embora a conduta do doente o esteja , por vezes , muito.
Não só o delírio do ciúme pode não passar de uma menos «letal» neurose , como é muito difícil de detectar , passando a expressão , será o mesmo que encontrar agulha em palheiro . Mas se conseguirmos uma plataforma segura que consiga fazer a distinção , seremos capazes de diferenciar entre a neurose generalizada e a psicose .
Pormenores podem ser fundamentais no rastreio da doença .
Mesmo na neurose , os traços característicos da personalidade podem ser confundidos com algum sintoma , como por exemplo o facto de eu ser minucioso por natureza poder indicar falsamente ( ou não ?) um desarranjo qualquer ...
Existem « (...) temperamentos originariamente desconfiados , azedos , maldosos , que nas acções dos outros não vêem senão o mal , nos actos mais insignificantes não procuram senão descobrir motivos tenebrosos ou fitos depravados .»iv
Não bastando já estas dificuldades naturais , ainda se complica o facto de o homem ser um animal social em que para o nascimento da desconfiança , basta um desencontro , um falso testemunho , uma aparência , um boato .
Embora doenças , (estas inclinações do carácter para dar demasiada importância ao que outros dizem , ou carácteres que são naturalmente (?) desconfiados ) , não são ainda patologias , mas terreno propício para o desenvolvimento do delírio do ciúme .
A desconfiança , a importância dada ao juízo alheio , as tentativas de confirmação da suspeita , são já sinais indicadores que algo não está a funcionar «bem» .
A questão da realidade é aqui fulcral . Quando o sujeito se convence da realidade da sua ideia fixa e tenta por todos os modos confirmá-la ( deixando o papel de perseguido por esta mesma ideia ) entra realmente (ironia outra vez ... ) no terreno da paranóia , do delírio .
Está inerente então que a distinção entre a normal doença , e a anormal patologia (porque menos comum ) se encontra na capacidade de discernir o que pertence à esfera do sujeito , da sua interpretação , e o que pertence à esfera do objecto .
Isto é , «(...) as faculdades de critério psychico que se manteem no caso normal , embora abaladas , mas que no caso pathologico de todo se perderam . » v
Num caso a interpretação feita das coisas circundantes levam o sujeito a admitir a suspeita , isto é , uma possibilidade de verdade , no outro caso , a interpretação feita , a suspeita é a verdade , e o mundo gira e é moldado à forma da suspeita , em vez de ser a interpretação moldada ao mundo .
Assim sendo , torna-se como já referimos , numa ideia fixa .
O que é isto que denotamos como fixidez da ideia ?
É tão só uma ideia que se impregna em toda a mentalidade do doente .
«Esta sempre presente ao espírito e por isso mesmo vem coexistir com todas as outras ideias que lá possam nascer , vindas das percepções actuaes ou dos factos da memória .»vi
Assim , as alucinações , deformações tendenciosas que daí nascem , são devidas a quê ?
Apenas devido à perda da capacidade critica ?
Devido ao facto de o doente acreditar tanto em si e nas suas capacidades (que originaram a desconfiança ) que tenta por todos os modos provar a si e aos outros que tem razão , que não está louco ?
Será que a capacidade de admitir o erro , o engano , o medo de ser enganado ( questão da realidade ) , é o cerne da entrega de corpo e alma do sujeito a uma ideia fixa ?
« Não há possibilidade de que o doente reconheça a falsidade d’uma interpretação , a futilidade d’uma prova , a possibilidade d’um erro , ou a phantasia d’uma concepção. Assim se apresentam sempre os paranoicos . »vii
Como o autor afirma , a integridade da reflexão está na capacidade de discernir e visualizar a possibilidade de outra interpretação , isto é ( em palavras do próprio autor ) a moderação na visualização das consequências e ordenação das ideias são os traços fundamentais da reflexão , posto que se estes traços desaparecem o espírito não pode «(...) concluir pela inanidade de certas das suas conclusões.» viii perdendo a reflexão a sua integridade .
Não é uma lógica intacta que o delírio desvia , é uma lógica delirante , fora do real , que opera no paranóico.
«O espirito inteiro do paranoico esta lesado . Ou antes , se a memória se conserva bem , se a percepção de factos correntes se faz de modo normal , se as idéias se associam e se movem como physiologicamente em tudo quanto se não refere ás idéias delirantes e n’estas , admittido o ponto de partida , as faculdades dominadoras abalaram-se , - a logica , o criterio , a reflexão perderam-se e apenas na apparencia apresentam o aspecto da normalidade .»ix
Como já foi dito anteriormente , o paciente parece acarinhar o seu delírio . Sente-se bem com ele .
Se interpretar-mos este facto à luz de Reich e da sua teoria , especialmente no âmbito sexual , é fácil de entender o prazer daí recorrente , uma vez que segundo Reich , pensar no momento de prazer descarrega um pouco de tensão e promete um pouco de prazer para a concretização do acto . ix
Se por outro lado atentarmos que aquele que sofre o delírio , não o vê como tal , e se o delírio é encarado como tal , o ter razão , o lutar para desmascarar a conspiração , desaparecem mostrando cruamente ao eu que vive enganado ... mas isto é subjectivo , uma vez que eu que escrevo agora consigo (?) discernir essa possibilidade , suponho que um alienado não .
Aqui discordamos de Miguel Bombarda quando afirma que o apego à fantasia delirante é fruto e prova da ausência de critério e lógica «(...)que está por baixo de todos os delirios systematizados . »x ; e discordo porque é compreensível a atitude de defesa do paciente a quem o delírio arrasta emocionalmente , se lhe retiramos o delírio , que é tudo o que (doentiamente ) tem , o eu entra em colapso . Assim o eu defende-se da possibilidade de derrocada de tudo aquilo em que se inscreve . A remissão recorrente a Nietzsche não deixa de ser necessária .
«As idéias encadeiam-se , associam-se , a sua approximação com outras actuais ou do fundo memorativo estabelece-se regularmente , mas todos estes encadeamentos , aproximações e associações não se effectuam como normalmente por elos successivos , por pontos de contacto exactos , mas antes com saltos bruscos , interrupções violentas , approximações forçadas . (...)Quer dizer , o elevado criterio que preside à reflexão , as faculdades criticas , estão gravemente affectadas . O mecanismo geral da reflexão segue as regras do espirito sadio , mas os elementos que a elle vão ser submetidos apresentam-se falsificados ; d’aqui a desordem e a precipitação na associação em vez da ordem e da moderação que constituem os caracteres principaes d’uma reflexão normal .»xi
A questão do real faz não só parte da sanidade , como do delírio , pois a ideia delirante corresponde a algo de possível que se apresenta ao alienado como intencionalmente encapotado , ou naturalmente de difícil apreensão , o que dos dois modos resulta no sentimento de revelação , descoberta , de uma verdade de árduo acesso para o paciente .
O que é essencial para o paciente não é a verdade , mas a sua verdade , o seu processo mental , de tal modo que (...)o objecto do delírio é alguma coisa de accessorio nos paranoicos . O mal está na lesão do cerebro .»xii ; ficamos com a sensação que o sujeito se defende , e não é só pelo facto de querer mostrar que é ele que tem razão , pois se assim fosse , estaria ansioso para desmascarar a charada . Mas o sujeito , quer por sofrer da patologia , quer por outro se empregar a defende-la , dá-nos a sensação de Ter alguma satisfação , algum prazer com o arrastar e persistência da situação . Como Miguel Bombarda também diz . Mas o que Miguel Bombarda não diz , e essa é a tese de um dos autores deste trabalho , é que esse prazer «patológico» pode provir de um certo tipo de voyerismo que pode ser comprovado pelo gosto em arrastar a situação adiando sempre o desfecho (pelo menos um desfecho que não acabe com um objecto cortante em direcção ao pescoço de outrém ) de evaporação da ilusão. Quase que somos levados a dizer que o doente necessita da ilusão . Além de arrastar a situação , podemos sustentar esta tese com o facto único entre as paranóias , de que aquele que sofre deste tipo de patologias não se inibe minimamente de falar delas . Muito pelo contrário .
Indo ao ponto do pormenor , e da repetição , o doente parece ter prazer em exibir toda a situação .
Temos tentado ao longo desta segunda parte expor alguns tópicos de Miguel Bombarda em relação à realidade e à nossa actividade reguladora da mesma , chegando ao desfecho que a perda da nossa capacidade critica , da faculdade de ajuizar perspectivisticamente nos faz entrar no delírio , no qual não perdemos a relação com a realidade , pois o delírio nos transporta para a realidade na qual quem dele sofre se inscreve completamente , mas perdemos a relação com a possibilidade que temos de reflectir sobre ela.
Levantámos também a questão de qual a origem das lesões que levam a reacções psicóticas e neuróticas .
Assim passamos ao tópico seguinte , o da sexualidade , em que com a ajuda de Reich , se vão levantar algumas hipóteses de reflexão .
Comecemos por repetir algo já dito anteriormente ...
As conotações sexuais das ideias delirantes são habituais , e a noção de infidelidade do cônjuge provoca uma alteração da capacidade crítica em relação à realidade «normal» , uma vez que o «doente» interpretará a realidade conforme as suas suspeitas , de tal modo que a sua interpretação se torna a verdade , e por todos os meios tenta prová-la , contra uma conspiração que visa enganá-lo , isto é , o duplo movimento de desconfiar dos outros que o tentam enganar , e arquitectar os seus próprios planos para confirmar as suas próprias suspeitas .
Estamos a tratar o delírio do ciúme , que tantos poemas originou , e que tantas almas fez expirar .
A neurose é terreno propício para o ciúme . E o aumento gradual do ciúme é um passo em frente para o delírio .
Que mecanismo é este da neurose , como actua ?
O sentimento de posse , a insegurança , o medo de falhar , resumindo , a ansiosidade é o motivo mais importante para o despoletar de uma situação de ciúme . A questão do valor pessoal , do capricho , da crença preconceituosa de aglutinação do outro (bem ao jeito da definição de amor autofagista e canibal de Sartre ) e outros jogos ou mecanismos psicológicos que não nos interessa aqui discutir , são causas de mal estar nos amantes , principalmente a coisas na experiência anterior que vai determinar , regra geral , o comportamento ulterior . Casos impressionantes como aquele da senhora que só conseguia prazer sexual se se masturbasse com a lâmina de uma faca , relatado por Reich , e desvendado pelo mesmo quando remonta até ao primeiro momento de prazer da senhora (então menina ) descoberto pela mãe que logo lhe arremessa com uma faca que por pouco não a atinge e que fica espetada com a ponta no soalho , fazem-nos a um mesmo tempo achar interessante e dramático o assunto .
A nível das inibições , (neste caso culturais ) também Foucault denota na sua História da Sexualidade a mudança operada da época das luzes , para o regime vitoriano através da instauração de valores e por vezes de reprimendas , fora do campo sexual , dentro do campo do poder .
Comecemos pela questão do indivíduo .
Reich na senda de Freud , advoga um sistema «fechado» a nível energético , não a nível de influências .
O instinto do acto sexual sugere a necessidade de uma tensão agradável , único entre todos os instintos , que tende para o prazer e não para a fuga à dor .
O instinto é o aspecto motor do prazer . Na entrega , à volúpia , às sensações , ao desejo , o motor desse desejo é o prazer , na medida em que se recorda um prazer anterior , que se deseja repetir .
Convém fazer a clara distinção entre impulso e instinto . Um instinto tem muitos impulsos . Consequentemente o impulso não é um movimento de A B.
È o próprio motor do prazer na medida em que impulsiona para o prazer , através da lembrança de uma memória , de uma acção ou de um prazer experienciado previamente .
Mas que não se pense que somos marionetas dos nossos instintos . As nossas percepções não são meras experiências passivas sem actividade por parte do ego .
É aqui que reside o conceito de potência orgástica .
Porque um estímulo igual em certa zona , em dois indivíduos diferentes produz sensações diferentes , uma das explicações passa pelo facto de que a «atitude» para com o estímulo é extremamente importante , e esta «atitude» é a base da diferenciação entre o prazer completamente orgástico e as sensações puramente tácteis , isto é , entre o prazer completamente orgástico e as sensações puramente tácteis .
Denomino esta «atitude» como a entrega .
O impulso é já no caso sexual , uma pequena forma de prazer , prometendo um clímax .
Do grau de entrega de cada pessoa aos estímulos , depende directamente a intensidade da sensação .
A um e mesmo tempo , o componente motor do prazer è experienciado passivamente e a sensação è activamente percepcionada.
Que dizer de um alienado que se entrega completamente ao seu delírio ?
O instinto e as hormonas , por vezes parecem não nos fazer pensar em mais nada .
Referimo-nos aqui ao manancial de sensações que é o acto sexual .
Estes pensamentos , quando fantasias , não são actividade aleatória sem utilidade .
Fantasiar impele para a concretização : a) mostrando um certo prazer na possibilidade de concretização ( memória ou sugestão )
b)maior desprazer no caso de frustração ou não concretização .
Fantasiar gera tensão , e descarrega uma pequena quantidade de excitação sexual .
Pequena quantidade essa que é uma «gratificação» , «promessa» de um prazer maior .
A promessa de prazer subjuga o desprazer inerente à «grande tensão».
Que dizer de um alienado que defende o seu delírio , e tem um certo prazer nele ?
Segundo Freud , o impulso , a necessidade , era determinado pela quantidade de excitação (libido) . Sendo o prazer a natureza do impulso , é o prazer uma qualidade psíquica . Se é uma qualidade psíquica , como se pode falar num factor quantitativo ?
O que se chama de prazer mais intenso é tão só a entrega maior por parte do sujeito ao prazer , aos estímulos . Uma atitude diferente para com os estímulos sensoriais ...que é o que penso que o ser que padece de um delírio do ciúme tem , isto é , como todo o seu ser está absorvido e se inscreve na sua fantasia ( e como sabemos que o homem reage especialmente aos estímulos visuais ) está aberto ao prazer , prazer que de facto retira da visualização da sua desconfiança , e até mesmo das perseguições ...Ainda para mais numa sociedade que tolera os devaneios passionais ...Obviamente devido ao VALOR que a instituição familiar possui no seio dessa mesma sociedade ; e a comportamentos que ameacem a sua estrutura , como o adultério ,se defende indirectamente através dos indivíduos incutindo-lhes sentimentos de abominação à TRAIÇÃO que lhes é feita .
O acto de desejar tem de ser encarado como vindo de uma instância muito profunda , vindo do ser , do todo do ser humano .
Além do mais , no doente psicótico , acha-se uma maior visibilidade das ideias sexuais que nos outros são cuidadosamente escondidas ou apenas metade admitidas .
O que nos «normais» é ocultado , a nível de fantasias e comportamentos sexuais desviantes , nos psicóticos cerca a sua consciência .
Os desvios inundam a consciência interior , e a estranha situação interior desorienta o indivíduo provocando ansiedade . Assistimos a um conflito , não só no psicótico , mas especialmente , no «normal» , em que existe um conflito entre o mundo interior e o mundo exterior , entre sujeito e mundo , entre sujeito e sociedade .
O sexo está tão presente e é tão camuflado que cria conflitos psicológicos .
« A person who as allowed prohibited sexuality , while retaining his defense against it , must begin to sense the outer world as strange . The world , too , for its part , labels such a person a freak and excludes him from its regimented ranks . Indeed , the world thrusts sexual sensations upon the psychotic patient so forcefully that he has to become estranged from usual thinking and living . In turn , he is often clearly aware of the sxual hypocrisy of his environment . Hence , he ascribes to the physician or to his own relatives what he himself directly feels . And what he experiences is reality – not fantasies about reality . People are «polymorphously perverse» and so are their morality and their institutions. xiii
O neurótico experiencia a vital biologia do corpo , mas não pode pactuar com ela , antes , é confundido por ela e começa a concebê-la em termos de perversa , o que por exemplo se vai reflectir em termos na linguagem . Termos como «f...r» , «comer» , além de feios , denotam uma atitude perversa para com o sexo , mas generalizada e até certo ponto aceite .
A neurose é uma doença de massas , e as perturbações das funções genitais sexuais , é uma das causas , motivos , mais frequentes . Mas não ocorre por igual nas massas .
Os que estão bem socialmente (economicamente) , não são em regra socialmente agressivos ou perigosos , ao contrário dos que estão mal na escala social . Será devido à revolta contra a dureza da vida em contraste com os outros que «vivem bem »? De qualquer forma o resultado desta tensão faz com que as barreiras morais que inibem , sejam destruídas e os impulsos perversos e criminais clamem por realização , o que significa que as massas pobres economicamente falando , estão mais expostas ao perigo da neurose , que por sua vez favorece a manifestação das psicoses em indivíduos , que embora predispostos , poderiam não desenvolver a patologia em ambiente diferente .
O que nos leva a retomar um problema já exposto , o da relação alma / corpo .
Chegamos então a :
3 concepções básicas na relação entre a esfera SOMÁTICA e a esfera PSÍQUICA :
1)materialismo mecanicista –todas as doenças psíquicas ( ou manifestações ) têm uma causa física;
2)idealismo metafísico – todas as doenças ou manifestações psíquicas só podem ter uma causa psíquica . No modo de pensar religioso , todas as doenças somáticas são também de origem psíquica . Corresponde ao ponto de vista em que «o espírito cria matéria » e não vice-versa ;
3)paralelismo psicofísico – o psíquico e o somático são dois processos paralelos que têm um efeito recíproco um no outro .
Mas toda esta reflexão que partiu de Miguel Bombarda , já vai um pouco longe .
Miguel Bombarda é um materialista . O que corresponde a que para ele as patologias tenham uma causa física . O aumento de tensão por parte da sociedade , dos outros , pode desequilibrar o sistema , é então uma causa física?
Mas o que aqui se tentou fazer foi também apresentar algumas condições em que se favorece o surgir da neurose , e o mecanismo da sua formação .
A questão da atitude para com o sexo também foi focada , uma vez que nem todos como Reich ... «Faço amor com a minha mulher porque a amo e a desejo e não porque tenha um certificado de casamento ou para satisfazer as minhas necessidades sexuais .»
Conclusão :
As conotações sexuais das ideias delirantes são habituais , e a noção de infidelidade do cônjuge provoca uma alteração da capacidade crítica em relação à realidade «normal» , uma vez que o «doente» interpretará a realidade conforme as suas suspeitas , de tal modo que a sua interpretação se torna a verdade , e por todos os meios tenta prová-la , contra uma conspiração que visa enganá-lo , isto é , o duplo movimento de desconfiar dos outros que o tentam enganar , e arquitectar os seus próprios planos para confirmar as suas próprias suspeitas .
Bibliografia:
Bombarda , M. , O Delírio do Ciúme , Medicina Contemporânea , Lisboa , 1896
Athayde,J.C. , Elementos de Psicopatologia 4 ,Fundação Calouste Gulbenkian , Lisboa , 1987
Reich, W ., Escuta Zé Ninguém ! Trad. Maria de Fátima Bivar , Publicações D. Quixote , Lisboa , 1972
Reich, W ., The Function of the Orgasm , Souvenir Press , London , 1999
Sunday, July 22, 2007
Delfim Santos
Delfim Santos sempre se pautou por uma crítica persistente e construtiva dos (seus) tempos modernos. Época conturbada, marcada nos meios académicos, por uma tentativa de reorganização dos saberes, e pelo início (continuamente observado por Delfim Santos) de um período de letargia ou época de estagnação, testemunhada pelos diversos textos em tom de reflexão e alerta acerca das mentalidades e do papel da filosofia no mundo actual.
A exposição baseia-se nos comentários feitos pelo autor, e vive da interpretação original que Delfim Santos tem de Kierkegaard e de Heidegger.
O tema deste trabalho reside num horizonte em que o analisado se dá no campo do que está fora de qualquer análise. A reflexão a que nos propomos, assenta fundamentalmente na análise ou consideração da existência sob a perspectiva do ser em Heidegger, e do desespero em Kierkegaard, pois estes dois autores são intervenientes privilegiados na interpelação feita por Delfim Santos, à condição humana moderna, sendo a nossa tese que o papel da filosofia como operadora e criadora de horizontes de sentido que o autor português defende, está alicerçada pela intimidade entre ser e pensar tal como Heidegger a descreve, e pela tensão existencial proveniente do desespero na base da angústia que Kierkegaard advoga, dando a essa tensão desesperante, um carácter positivo.
O lugar da existência e do pensamento, as posições que estas duas faces da mesma moeda ocupam uma em relação à outra, estão na base da formulação da definição do existencialismo, em que a realidade primeira inexcedível e incomunicável é a existência, o ser, nas palavras de Delfim Santos, o sendo. Quer falemos em fortes sentimentos relativos à vida do eu, como Kierkegaard faz, quer apelemos à atenção sobre o que aparece, sobre a doação originária daquilo que nos rodeia, do que está sendo. Como já Feuerbach apelara, existe um esfriar da vida, da existência, pelo conceito, pela subjugação da esfera existencial do sujeito pelo edifício conceptual criado em toda a tradição reflexiva ocidental, sendo que este apelo de Feuerbach tem como destino o sistema hegeliano, culminar desse edifício conceptual.
A crítica fundamental do existencialismo parte do ponto de vista segundo o qual, uma qualidade ou faculdade humana, não pode ser privilegiada em detrimento das outras, e extrapolada relativamente a todo o conjunto. E é relativamente ao conjunto (homem) que se distingue o ser humano como algo mais do que soma de predicados, algo além, inapreensível e inalienável, que se furta a definições.
«O resultado foi que o pensamento, desenraizado da existência, reduziu esta ao mínimo, e de tal forma que o homem se desconhecia como homem no seu interesse de pensar sub specie aeternitatis.»1
É nos tempos modernos que Delfim Santos encontra a exigência de um novo homem que esbata esta diferença, arreigada ao longo dos tempos, e de cada vez mais dar ao pensamento o conteúdo da vida, da existência, da vivência, não numa relação antagónica entre esferas estanques, mas de todos fazermos um esforço de retorno repetido e sistemático à esfera do pensar e do ser.
«(...) preocupações dos homens, que se esforçam por ser contemporâneos de si próprios(...)»2
Este esforço comporta acções de informação ( recolha, estar a par da actualidade) e de formação ( enquadramento do saber adquirido, reflexão sobre o mesmo e sobre si), e o âmbito desta tipologia da acção é unificado pelo espanto, pela acção da filosofia, que é sempre uma acção (em última instância) de recondução e pensamento sobre o actual. A filosofia é a presença, e actualização de si próprio.
«A filosofia é actividade de fundamentação.»3
Não é propriamente um conteúdo, mas um fundamentar, actividade criadora de possibilidades, investigação dessas possibilidades, instigação à criação de mais possibilidades.
Concebida como criação, esta actividade de fundamentação comporta duas vertentes de referência:1)lógica
2)ontológica
Referências que reflectem a duplicidade da formação da relação com o real, como o formamos, e como estamos nele inseridos.
A filosofia adquire um significado de operante, opera e articula sobre o geral.
Como conciliar o «geral» com a esfera existencial e inapreensível?
Esse campo do eternamente velado, a experiência singular do sujeito, é inacessível no geral, a sua particularidade é geral. Quanto muito, a determinação de uma filosofia da existência cinge-se ao plano dos pontos de contacto, entre os quais se encontra esta noção de filosofia como impulso instintivo e racional, impulsivo e de atitude, filosofia, dizíamos, como operante.
«A filosofia é, portanto, ontologia fundamental. Com esta resposta, susceptível de mais funda interrogação, como é próprio da filosofia, indicamos o seu nível de radicalidade, a sua função objectivante, a sua intenção operativa e geral.»4
Esta preocupação do e a partir do ser, encontra uma planície de questionamento que podemos remontar a Heidegger, acrescendo-se o facto de que Delfim Santos muito estudou e co-mentou o filósofo alemão.
Na sua leitura de Heidegger, a distinção entre ser (sein) e sendo (dasein) adquire particular importância e singularidade, pois é a partir desta distinção que Delfim Santos se propõe pensar o sentido do ser, ou seja, todos os filósofos se debateram com esta questão, mas o professor Delfim Santos escolheu o posicionamento de Heidegger para se decidir na questão.
O ser tudo o que é, tudo o que existe, o sendo é a determinação, o modo de ser desse existente.
«O ser é o que determina o sendo como sendo, isto é, todos os aspectos empíricos da realidade.»5
A dualidade entre lógico e ontológico começa aqui a tomar rosto.
«Em resumo: o conhecimento essencial é o conhecimento do «ser» das coisas; o conhecimento existencial é o do «sendo».»6
A nível psicológico (ou lógico, se entendermos o lógico como estrutura operativa da mente), a própria actividade do pensamento dá pistas acerca da formação do real.
«Quand la pensée, reclamée par une chose, se tourne vers elle et la suit, il peut lui arriver de se transformer chemin faisant.»
«(...)de prêter plus d’attention au chemin qu’au contenu.» 7
Chemin faisant significa de passagem, pelo caminho, de caminho.
O que quer Heidegger dizer, quando afirma que devemos prestar mais atenção ao caminho que ao conteúdo?
Notemos a expressão utilizada por Heidegger, segundo a qual o pensamento é reclamado pelas coisas.
É proposta a reclamação do pensamento por parte da coisa, isto é, a coisa (qualquer que ela seja) reclama, arrasta, apela, o(ao) pensamento; e o pensamento se debruça sobre ela, segue-a, podendo até chegar a ela, mas esse chegar a ela é já caminho feito, tal como o debruçar-se, o seguir, e o «escutar» o apelo, a reclamação da coisa.
O ser reclama o pensamento, que o segue , que sobre ele se debruça, em suma, o pensamento reage ao ser «abraçando-o», envolvendo-o, e podemos dizer operando-o.
A coisa já é o estado final desta comunhão entre ser e pensar.
A «coisa» determinada já é o dado, já é o produto final desta interacção.
De que modo é a coisa determinada?
Em que consiste essa determinação?
Sumariamente, o prestar mais atenção ao caminho que ao conteúdo «(...)de prêter plus d’attention au chemin qu’au contenu.», é o procurar dar respostas a estas questões que se levantam, é o pensamento re-flectindo, pensando no seu modo de operar.
Qual é a importância dessa síntese, além do descobrir como funciona o nosso pensamento?
Essa síntese é uma relação, e ao descobrir e clarificar essa relação, nós não só trazemos à luz o que é a nossa mente (através da análise do seu modo de funcionamento), como a jusante deste processo poderemos dar resposta (mais clara) a questões tais como a identidade e a diferença.
Aqui a pergunta pela possibilidade do conhecimento enreda-se nos movimentos da consciência, mais que propriamente na junção, no ponto de contacto entre sujeito e objecto.
Este duplo debruçar-se (primeiro sobre a coisa, depois sobre o próprio modo de se debruçar - pensamento pensando como pensa) incide especialmente, mais uma vez, no processo e não no «produto acabado»
O ser é o que existe, o geral.
«Sendo é tudo de que falamos na vida corrente, o que pensamos e as nossas relações com o que pensamos, a forma de nos comportarmos perante este ou aquele facto e também o que nós somos e o como somos.»8
O ser é o que é comum nos entes, no sendo.
É que o homem enquanto ente inscrito no ser, e enquanto ser pensante, está aberto ao ser, sensível (em potência pelo menos), ao apelo do ser, colocado diante dele, habitando-o, referindo-se, reportando-se, ligando-se, relacionando-se com o ser, e ao mesmo tempo lhe corresponde.
O homem é este nexo de correspondência , e não só. Podemos falar de uma dialéctica circular fundada na identidade.
Senão vejamos:
1)a identidade é a restituição do mesmo a si mesmo no seio de uma unidade diversa (origem também da diferença);
2)a co-pertença é o elo que liga um termo ao outro, ligando-se a si mesma...
A B
3)o homem, porque nexo de correspondência (devido à abertura, à ligação ao ser, ao facto de ser pensante) é, num certo sentido a consciência do ser, retornando ao berço da identidade e da diferença, ou seja, o homem pensando o ser completa a síntese do uno e do diverso.
A pertença ao ser é parte do ser, porque é transpropriada, e o ser é presença, animando, interpelando, movendo o homem para si. A abertura do homem ao ser revela uma composição una e harmoniosa. A essência do ser revela-se no homem, e a essência do homem revela-se no ser, é isto que interpretamos como a transpropriação de um e outro.
«A existência compreende-se a si mesma, a partir sempre e unicamente das suas propriedades.»9
Esta dialéctica fundamental há muito que vem sendo afogada pelos esforços de ordem e mediação, e como tal tem sido esquecida.
Para o aprofundamento além deste pensar representativo tão arreigado em nós, é necessário um salto.
Tem de ocorrer uma ruptura, entre a representação do homem em categorias estanques, como o sujeito e objecto.
Foi esquecida a intimidade, e este abandono é um salto para longe da representação corrente do homem como animal racional, representação que se tornou relação estéril, porque se tornou sujeito para os seus objectos.
Só através, a partir de nós, se pode o ser desdobrar, estender, desenrolar, manifestar, em suma... ser presente.
Esta relação íntima contudo pode ser bloqueada por um voltar de costas ou tapar de ouvidos. Escutemos o apelo da esquizofrenia moderna, e deixaremos de ouvir o apelo do ser propriamente (pois dilui-se), o que não significa que não sejamos sensíveis a esse apelo. O nome da causa da falta de referente, da esquizofrenia? A técnica.
«O sendo é o que se mostra na experiência diária e constitui a esfera do ôntico. O ser que determina o sendo como sendo constitui a esfera do ontológico.»10
Esta interpelação que o ser faz ao pensamento, pode sofrer um eclipse se o pensamento se torna mudo ao ser, o que é possível quando o ritmo de vida é tal que tudo nos passa à frente como algo dado, óbvio. Neste aspecto, estar no mundo é um estar pobre, pois pouco estaremos com os outros e com nós próprios, pois perdemos os contactos com essas realidades, a função operante e criadora da filosofia enquanto espanto esbate-se e toma forma o ciclo vicioso...quanto mais insensíveis somos ao que nos rodeia, menos o que nos rodeia nos interpela.
«A perda do homem na vulgaridade, ou no mundo das coisas, mostra-se como fuga da sua própria existência.»11
A crítica à modernidade é uma reflexão comum ao pensamento de Delfim Santos, num duplo sentido, no empobrecimento dos arredores da vivência humana, e no em-mesmamento.
O temor de ser diferente, da solidão, do estranho, são tonalidades constituintes do mundo da maior parte dos homens.
Também Delfim Santos comenta a existência inautêntica como efeito deste empobrecimento do homem.
«A existência, e a preocupação que a exprime, pode manifestar-se de forma autêntica ou inautêntica.»12
A leitura que Delfim Santos faz da angústia, é devedora de Kierkegaard, e do modo como Delfim Santos interpretou o filósofo dinamarquês.
Mesmo deslocando o polo de atenção da angústia para a presença ante o proibido, como referência que se sente na escolha, Delfim Santos conserva a tensão na composição do eu.
«O homem é a possibilidade de ser quem nunca chega a ser.»13
O homem não tem espírito, é espírito.
O que é o «espírito»?
É o eu.
O que é o «eu»?
O homem é um eu, e o eu é uma relação que se estabelece consigo própria, não é uma relação que se estabelece com qualquer coisa exterior a si. O espírito consiste no orientar essa relação para a própria interioridade, o eu não é a relação em si, mas o seu voltar-se sobre si própria – ( o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida).
O homem é uma síntese de :
infinito/eterno/liberdade e de finito/temporal/necessidade.
Uma síntese é uma relação entre dois termos, e assim, aqui o eu não existe ainda.
Numa dada relação, por exemplo: A B , existem dois termos.
São respectivamente A e B. Mas a própria relação entra como um terceiro, que se relaciona com ambos esses termos, de maneira singular e de certo modo isolada, ou seja, o A relaciona-se com a relação, independente do B, e a mesma coisa se passa com este, independentemente do A.
Esquematizando na figura:
A B
Cada termo tem uma existência separada no seu relacionar-se com a relação. Repetimos, a relação é o terceiro elemento de si mesma.
Por exemplo existe uma relação entre mim e uma caneta que utilizo para escrever, entendida como alteridade, ela só se me apresenta num horizonte relacional. A consciência, a sensação de algo, é uma relação com algo. Relação é a conexão entre duas ou mais coisas , que se chamam termos da relação , sejam eles objectos , pessoas , factos ou acontecimentos .
A relação estabelece um vínculo de união entre os elementos relacionados e possibilita a unidade dentro da multiplicidade .
No exemplo dado pela caneta, eu sou o sujeito, ela o objecto.
Se esta relação se estabelece sobre si mesma, aí temos o eu.
«Se, pelo contrário, a relação se conhece a si própria, esta última relação que se estabelece é um terceiro termo positivo, e temos então o eu.»14
Mas como pode a relação estabelecer-se consigo, sem um objecto exterior a ela?
É o eu, a consciência de ter consciência de algo?
Ou é a consciência tendo consciência de si mesma?
A questão parece residir na necessidade de um elemento de alteridade, na relação ...
«A consciência sensível simples é a certeza imediata de um objecto externo. Um tal objecto tem, antes de mais, a determinação de ser um este, agora segundo o tempo, aqui segundo o espaço.»15 , dá-se um fluxo temporal no seio do agora (que se esvanece ao mesmo tempo que permanece), e existe um infinito espacial (o aqui nas suas dispersões por vários aquis realizados e possíveis). O aqui e o agora subsumindo sob a sua alçada as suas efectivações e possibilidades, são, como afirma Hegel, «(...)também este aqui contém em si de um modo simples muitos aqui; 16ou ambos são como universal, que nele tem ao mesmo tempo diferenças.)» .Mas desde logo somos alertados, por Hegel(implicitamente) que esta determinação espácio-temporal tem um referente, que é o sujeito. Como se dá a referência quando não há objecto sensível?
«§4 – Visto que a consciência consiste essencialmente na referência a um objecto, é diferente segundo os diversos objectos que tem.
§5 – Ao mesmo tempo porém, o objecto é essencialmente determinado pela relação da consciência com ele e torna-se diferente com o melhoramento da consciência.»17
É o eu, a consciência de ter consciência de algo?
Ou é a consciência tendo consciência de si mesma?
Hegel afirma que a autoconsciência é primeiramente, sensível18e concreta, e ainda que se voltada sobre si mesma, pode ser um objecto sensível e concreto, para si ou para outra consciência.
Parece ser a tese de que o eu é ter consciência de ter consciência de X.
É de difícil representação, mas o texto de Kierkegaard parece deixar em aberto a questão...
A A
Será que só podemos ter consciência da nossa consciência através da necessidade de uma mediação exterior? Talvez para podermos responder à questão, fosse necessário efectuar a experiência de não ter consciência de nada, para tentar apreender se conseguíamos... continuar a ter consciência... de nós.
Qual a natureza do eu? Ela só nos é facultada mediatamente? Até o esquizofrénico, no seu rodopiar de personalidades, mantém o seu eu, a primeira instância que o determina entidade, embora esteja privado de uma identidade.
Quando Kierkegaard afirma que uma relação que se debruça sobre si mesma, só o faz por si(por vontade própria - ?- ) ou por um outro, que ao estabelecer a relação ( terceiro termo) relaciona-se com ela.
Tentando clarificar não simplificando, ( e se a nossa leitura não está mal feita), Hegel e Kierkegaard partem da consciência do acto de ter consciência de algo, para definir o eu.
Mas esta autoconsciência, ou é estabelecida por si, como eu por exemplo quando quero pensar na minha consciência e a torno objecto dela mesma, ou é estabelecida por um outro (abrindo caminho à imanência?), que a faz incidir em si própria.
A relação desse outro que faz a consciência incidir em si mesma, é a relação que permite ambos os termos relacionarem-se. Suponhamos que essa alteridade é Deus. Ao fazer o homem ter consciência de ter consciência, sendo ele o obreiro desse re-flectir da consciência, Deus passa a ser o segundo termo da relação. Logo o homem ao virar-se para a interioridade, ao pensar sobre o seu pensar, relaciona-se com Deus.
Várias remissões são aqui possíveis, mas a mais flagrante a nosso ver, é a teoria agostiniana do homem interior.
«Uma relação desse modo derivada ou estabelecida é o eu do homem; é uma relação que não é apenas consigo própria, mas com outrem.»19
A questão acerca da necessidade de mediação no acesso à consciência da nossa consciência, não fica aqui resolvida, pois a consciência só se dá no seu exercício, qualquer que seja o objecto. A questão que não nos deixa de assaltar, ficará sem resposta... a proveniência desse exercício...ou seja o aqui e agora do eu, da entidade.
Toda a manifestação, doação, é já um resultado. A «fonte» permanece inacessível.
O sapiens sapiens parece ser nas palavras de Kierkegaard, um pequeno arranjo divino, que faz toda a diferença, ao nível do objecto da consciência, isto é , Deus permite a relação da consciência voltar-se sobre si mesma no homem.
Toda a consciência é uma síntese de transcendência e imanência, mesmidade e alteridade. No animal, a diferença reside no facto de essa síntese não poder ser objecto de si mesma.
Qual o papel do desespero em tudo isto?
Se fosse nossa vontade voltarmo-nos sobre a nossa própria consciência, se fossemos apenas nós os responsáveis por esse re-flectir, o acto de não querermos ser nós próprios de não queremos esse re-flectir seria a única prova do desespero.
Mas «a vontade desesperada de sermos nós próprios», essa inclinação para incidirmos a nossa atenção sobre a nossa atenção, isto é, em nós, é prova da existência de dois tipos de desespero, e da conjunção de ambos como síntese do eu.
Ou melhor, porque foi estabelecida (relação) por outrem, pode estabelecer-se consigo, mas este toque da alteridade da relação que a faz sobre si mesma incidir, é também relação, e assim, é relação com quem estabeleceu toda a relação.
Resumindo:
O eu é a conjunção de uma relação que se estabelece a si própria, e que é estabelecida por outro alguém, ou por outra coisa.
Temos então identificados três termos, primeiro termo ( consciência de X), segundo termo (consciência da consciência de X), e terceiro termo, que estabeleceu este re-flectir.
O eu do homem é uma relação que se relaciona consigo própria e com quem a estabeleceu.
As figuras servem apenas para visualizar e para tentar tornar mais claro:
Relação com o termo que flecte a consciência sobre si
A B
Como que se a consciência fosse um elemento mecânico que tem como função incidir sobre as coisas. Se pensarmos que é assim que funciona na maior parte dos animais, e que só o homem pensa neste mecanismo...
A prova para este terceiro elemento, como afirma Kierkegaard, é o facto de que se fosse apenas o nosso eu a estabelecer-se a ele mesmo, só existiria uma forma de desespero, mas existem duas formas de desespero :1)«(...)não queremos ser nós próprios, querermo-nos desembaraçar do nosso eu(...)»;
2) «(...)a vontade desesperada de sermos nós próprios.»20
«(...)o homem se angustia por ser homem, que aquele que mais fundamente sente a sua situação de homem mais preparado para a angústia(...)»21
Kierkegaard não o diz deste modo, mas quase que somos levados a notar o eu como constituído de desespero, pois não pode escapar ao balanço de uma dependência
Que dependência é esta?
Este voltar-se (do foco de atenção) sobre si mesmo, (mediante o acto da alteridade), leva o eu a afundar-se sobre o que o leva a incidir sobre si, isto é, sobre a relação instituidora.
A consciência de termos um eu (fruto da consciência de ter consciência de X), não é algo agradável para a maioria das pessoas. Temos um eu, e o que é que fazemos com ele?
Para que é que serve?
Serve para alguma coisa a não ser para desesperar?
Não queremos ser nós próprios, é desespero, e queremo-nos livrar dele.
Mas como temos esta possibilidade (ou cruz para carregar?) de flectir a consciência sobre si mesma, e uma curiosidade predadora, queremos ao mesmo tempo ser o nosso eu, fazer a genealogia da nossa ipseidade. A escolha parece não ter residência nesta dialéctica. Parece que o homem está determinado por duas forças (desesperantes) antagónicas no seio da sua interioridade.
O eu é incapaz de atingir o equilíbrio.
«No desespero, a discordância não é uma simples discordância, mas a duma relação que, embora orientada, para si própria, é estabelecida por outrem; de tal modo que a discordância, existindo em si, se reflecte além disso até ao infinito na sua relação com o seu autor.»22
Assim, encontramos a escolha como paradoxo. O determinismo que é a síntese do eu, nas duas modalidades do desespero, só aparece numa escolha obrigatória, a saber, o ciclo infinito de uma re-flexão sobre si mesmo. A escolha é determinada. Como pode isto ser?
Quer eu escolha penetrar no eu, quer eu escolha ignorá-lo, escolho sempre o desespero, escolho sempre algo que já está definido à partida. Existe uma possibilidade de escolha com um só caminho, o eu.
Apenas existe o retorno ao eu, através do retorno a si mesmo, mas o retorno à sua mesmidade é o retorno à alteridade que o constituiu.
À maneira de um cachorro que persegue a cauda, a perseguição do eu nunca conduz ao eu, e no entanto existem dois caminhos para o eu. Respectivamente a relação que incide sobre si mesma, e a mesma relação que incide sobre aquilo que a faz sobre si mesma incidir. Este é o paradoxo originário da escolha. Mesmo o não escolher já é uma escolha.
O que é o desespero?
O homem sente uma inquietude.
É o desespero uma qualquer indisposição de ânimo?
De certo, tem apenas pelo facto de se referir à anima.
A esfera da propriedade de ser sujeito (paradoxal), é o berço de todo e qualquer acto de consciência. O eu, para Kierkegaard, estabelece-se mutatis mutandis no mesmo terreno, e do mesmo modo em que se pode aplicar a dialéctica do senhor e do escravo de Hegel, e que analisaremos um pouco mais à frente.
Se a incidência da consciência nela mesma fosse da exclusiva responsabilidade do sujeito, ou melhor, da sua vontade, só existiria o desespero da consciência que não quer sobre si incidir. Mas também é da vontade da consciência sobre si mesma incidir. Isto é, a tal vontade desesperada de sermos nós próprios, quando aquilo que somos é espírito...O espírito é o eu, e o eu é a relação que se conhece a si própria.
O homem só desespera se tiver consciência de ser possuidor de um eu, e se para isso tem de (esporadicamente) se debruçar sobre o seu ser, voltar a ser o que é.
Só podemos não querer ser aquilo que somos, se primeiro tomarmos consciência de que somos, isto é, sendo, e este sendo é a relação que se orienta para si mesma.
É à vontade de sermos nós próprios (segunda e originária forma de desespero) que se reduz e resolve todo o desespero.
Ao incidir sobre si, a relação obrigatoriamente incide (ou tenta incidir) sobre o que estabeleceu toda a relação.
Nesta tensão, consideramos duas notas, que constatamos de vital importância...
Existem duas formas do verdadeiro desespero e duas formas da referência desse mesmo desespero:
1) eu estabelecido por ele próprio- a) a nível da entidade, a consciência não quer incidir sobre si mesma, não quer ser ela mesma;
b) a nível da identidade, o indivíduo não quer ser o que é, projecta-se no virtual, quer ser outra coisa qualquer;
2) eu estabelecido por outrem- a) a nível da entidade, a consciência quer incidir sobre si mesma, quer ser ela mesma;
b) a nível da identidade, o indivíduo quer ser o que é, quer precipitar-se no real, e querendo ser o que é , é porque não o está sendo, o que significa que a consciência não está a incidir sobre si mesma...
Toda esta estrutura não nos é estranha
acessível senão na forma de paradoxo. Este absurdo que não pode deixar de ser, está na natureza do eu. E na natureza do eu está o desespero.
Podemos ter consciência do nosso desespero, ou podemos não ter consciência do nosso desespero, o que não implica que não estejamos desesperados. Podemos ter consciência dele e atribuir-lhe causas que não são as reais. Ter consciência de se estar no desespero, e dele querer profundamente sair, por si – mas por si não o consegue, e o seu , nosso esforço, só nos faz afundar mais nas areias movediças.
O desespero é fruto de uma discordância, entre as duas tendências do nosso eu, que já referimos anteriormente. É bastante inescapável.
Porque a relação se orienta para si, é estabelecida por outrem, esse flectir sobre si mesma é sempre o cão que tenta perseguir a sua cauda, até ao infinito.
«Eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente o desespero: orientando-se para si-próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até ao poder que o criou.»23
No geral, o desespero é uma vantagem, que o animal por exemplo não tem.
O homem define-se como sendo um ser desesperado?
O desespero distingue o homem. O homem tem um eu.
«A superioridade do homem sobre o animal, está pois em ser susceptível de desesperar; a do cristão sobre o homem natural, em sê-lo com consciência, assim como a sua beatitude está em poder-se curar-se.»24
Mas o desespero é a maior das misérias e a perdição para o homem.
Kierkegaard refere-se a esta problemática, esquematizando duas posições relativamente à relação do possível com o real:
1)Ascensão : (a passagem do possível ao real – poder-se ser o que se deseja, está contudo abaixo de efectivamente sê-lo – quanto mais perto do real, mais se progride);
2)Queda : (do virtual ao real «(...) a margem infinita do virtual sobre o real dá a medida da queda.»25
Assim, tudo o que não seja desesperar, é uma elevação.
Não desesperar equivale à absoluta ausência de desespero, ou melhor, equivale à destruição da possibilidade de estar desesperado, à aniquilação a cada momento, da possibilidade de ficar desesperado, assim a dialéctica consiste em ficar desesperado aniquilando logo de imediato essa possibilidade, de estar desesperado.
O desespero é vantagem e perdição. Provém do eu. Deve-se ao facto de possuirmos um eu. Ao mesmo tempo, é movimento.
O ser não desesperado é uma afirmação completa do real, logo, é a destruição do virtual, virtual «impotente e destruído», isto é, o real nega o possível.
O desespero é inerente ao eu. Deus ao fazer com que o homem seja esta relação, «como que o deixa escapar da sua mão», fazendo a relação depender de si mesma. A necessidade do desespero fornece a autonomia. O estar preso ao grilhão do desespero é o primeiro passo (incontornável) para a liberdade.
O desespero é responsabilidade do eu. A persistência do desespero só depende do eu, da sua atitude para com o desespero. A tensão desequilibrada e variante das duas tendências do espírito, determina o carácter a e persistência do desespero.
O desespero a cada momento de contrai, e a cada momento se pode extirpá-lo. O desespero é uma categoria do espírito, «(...) que no homem diz respeito, à sua eternidade.»26
«Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem duma doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, num relâmpago, raramente um medo inexplicável lhe revela a presença interna.»27 Acredite-se ou não que se é desesperado, padece-se de desespero.
O desespero assume várias personalizações. Elas dependem do arranjo entre as forças que compõem o eu.
O eu é composto de finito e de infinito. O relacionar da relação consigo mesma, é a liberdade.
O eu é liberdade, que por sua vez é a dialéctica das categorias do possível e do necessário.
Conscientes ou não, somos desesperados, porque temos um eu.
A consciência interior dá a medida do eu, do desespero.
«Quanto mais consciência houver, tanto mais eu haverá, pois que, quanto mais ela cresce, mais cresce a vontade, e haverá tanto mais eu quanto maior for a vontade. Num homem sem vontade, o eu é inexistente; mas quanto maior for a vontade «, maior será nele a consciência de si próprio.»28
Conclusão:
No intento de abordar os pontos de contacto entre Kierkegaard, Heidegger e a interpretação que Delfim Santos faz destes pensadores, tentámos estabelecer a raiz comum aos três, que na nossa interpretação é o facto de ser na existência, ou melhor, a partir dela, que podemos partir para a compreensão antropológica.
A relação ser/pensar, a definição da filosofia como operar aglutinador, e a tensão existencial traduzida pelo desespero, como tomada de posição no mundo, são os conceitos da afirmação de Delfim Santos, em que o homem é a sua existência.
Somos chamados para uma noção de homem em situação, imerso numa dinâmica existencial, que se apoia no carácter interpelativo e operante da filosofia.
Bibliografia:
Santos, D., Obras Completas- Vols. I-IV, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p.460
Heidegger, M., Le Principe d’Identité in Questions I ,trad. André Préau, Saint-Amand (Cher), Gallimard
Hegel, Propedêutica Filosófica, trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1989
Kierkegaard, S., Desespero, a Doença Mortal, trad. Ana Keil, Porto, Rés Editora
A exposição baseia-se nos comentários feitos pelo autor, e vive da interpretação original que Delfim Santos tem de Kierkegaard e de Heidegger.
O tema deste trabalho reside num horizonte em que o analisado se dá no campo do que está fora de qualquer análise. A reflexão a que nos propomos, assenta fundamentalmente na análise ou consideração da existência sob a perspectiva do ser em Heidegger, e do desespero em Kierkegaard, pois estes dois autores são intervenientes privilegiados na interpelação feita por Delfim Santos, à condição humana moderna, sendo a nossa tese que o papel da filosofia como operadora e criadora de horizontes de sentido que o autor português defende, está alicerçada pela intimidade entre ser e pensar tal como Heidegger a descreve, e pela tensão existencial proveniente do desespero na base da angústia que Kierkegaard advoga, dando a essa tensão desesperante, um carácter positivo.
O lugar da existência e do pensamento, as posições que estas duas faces da mesma moeda ocupam uma em relação à outra, estão na base da formulação da definição do existencialismo, em que a realidade primeira inexcedível e incomunicável é a existência, o ser, nas palavras de Delfim Santos, o sendo. Quer falemos em fortes sentimentos relativos à vida do eu, como Kierkegaard faz, quer apelemos à atenção sobre o que aparece, sobre a doação originária daquilo que nos rodeia, do que está sendo. Como já Feuerbach apelara, existe um esfriar da vida, da existência, pelo conceito, pela subjugação da esfera existencial do sujeito pelo edifício conceptual criado em toda a tradição reflexiva ocidental, sendo que este apelo de Feuerbach tem como destino o sistema hegeliano, culminar desse edifício conceptual.
A crítica fundamental do existencialismo parte do ponto de vista segundo o qual, uma qualidade ou faculdade humana, não pode ser privilegiada em detrimento das outras, e extrapolada relativamente a todo o conjunto. E é relativamente ao conjunto (homem) que se distingue o ser humano como algo mais do que soma de predicados, algo além, inapreensível e inalienável, que se furta a definições.
«O resultado foi que o pensamento, desenraizado da existência, reduziu esta ao mínimo, e de tal forma que o homem se desconhecia como homem no seu interesse de pensar sub specie aeternitatis.»1
É nos tempos modernos que Delfim Santos encontra a exigência de um novo homem que esbata esta diferença, arreigada ao longo dos tempos, e de cada vez mais dar ao pensamento o conteúdo da vida, da existência, da vivência, não numa relação antagónica entre esferas estanques, mas de todos fazermos um esforço de retorno repetido e sistemático à esfera do pensar e do ser.
«(...) preocupações dos homens, que se esforçam por ser contemporâneos de si próprios(...)»2
Este esforço comporta acções de informação ( recolha, estar a par da actualidade) e de formação ( enquadramento do saber adquirido, reflexão sobre o mesmo e sobre si), e o âmbito desta tipologia da acção é unificado pelo espanto, pela acção da filosofia, que é sempre uma acção (em última instância) de recondução e pensamento sobre o actual. A filosofia é a presença, e actualização de si próprio.
«A filosofia é actividade de fundamentação.»3
Não é propriamente um conteúdo, mas um fundamentar, actividade criadora de possibilidades, investigação dessas possibilidades, instigação à criação de mais possibilidades.
Concebida como criação, esta actividade de fundamentação comporta duas vertentes de referência:1)lógica
2)ontológica
Referências que reflectem a duplicidade da formação da relação com o real, como o formamos, e como estamos nele inseridos.
A filosofia adquire um significado de operante, opera e articula sobre o geral.
Como conciliar o «geral» com a esfera existencial e inapreensível?
Esse campo do eternamente velado, a experiência singular do sujeito, é inacessível no geral, a sua particularidade é geral. Quanto muito, a determinação de uma filosofia da existência cinge-se ao plano dos pontos de contacto, entre os quais se encontra esta noção de filosofia como impulso instintivo e racional, impulsivo e de atitude, filosofia, dizíamos, como operante.
«A filosofia é, portanto, ontologia fundamental. Com esta resposta, susceptível de mais funda interrogação, como é próprio da filosofia, indicamos o seu nível de radicalidade, a sua função objectivante, a sua intenção operativa e geral.»4
Esta preocupação do e a partir do ser, encontra uma planície de questionamento que podemos remontar a Heidegger, acrescendo-se o facto de que Delfim Santos muito estudou e co-mentou o filósofo alemão.
Na sua leitura de Heidegger, a distinção entre ser (sein) e sendo (dasein) adquire particular importância e singularidade, pois é a partir desta distinção que Delfim Santos se propõe pensar o sentido do ser, ou seja, todos os filósofos se debateram com esta questão, mas o professor Delfim Santos escolheu o posicionamento de Heidegger para se decidir na questão.
O ser tudo o que é, tudo o que existe, o sendo é a determinação, o modo de ser desse existente.
«O ser é o que determina o sendo como sendo, isto é, todos os aspectos empíricos da realidade.»5
A dualidade entre lógico e ontológico começa aqui a tomar rosto.
«Em resumo: o conhecimento essencial é o conhecimento do «ser» das coisas; o conhecimento existencial é o do «sendo».»6
A nível psicológico (ou lógico, se entendermos o lógico como estrutura operativa da mente), a própria actividade do pensamento dá pistas acerca da formação do real.
«Quand la pensée, reclamée par une chose, se tourne vers elle et la suit, il peut lui arriver de se transformer chemin faisant.»
«(...)de prêter plus d’attention au chemin qu’au contenu.» 7
Chemin faisant significa de passagem, pelo caminho, de caminho.
O que quer Heidegger dizer, quando afirma que devemos prestar mais atenção ao caminho que ao conteúdo?
Notemos a expressão utilizada por Heidegger, segundo a qual o pensamento é reclamado pelas coisas.
É proposta a reclamação do pensamento por parte da coisa, isto é, a coisa (qualquer que ela seja) reclama, arrasta, apela, o(ao) pensamento; e o pensamento se debruça sobre ela, segue-a, podendo até chegar a ela, mas esse chegar a ela é já caminho feito, tal como o debruçar-se, o seguir, e o «escutar» o apelo, a reclamação da coisa.
O ser reclama o pensamento, que o segue , que sobre ele se debruça, em suma, o pensamento reage ao ser «abraçando-o», envolvendo-o, e podemos dizer operando-o.
A coisa já é o estado final desta comunhão entre ser e pensar.
A «coisa» determinada já é o dado, já é o produto final desta interacção.
De que modo é a coisa determinada?
Em que consiste essa determinação?
Sumariamente, o prestar mais atenção ao caminho que ao conteúdo «(...)de prêter plus d’attention au chemin qu’au contenu.», é o procurar dar respostas a estas questões que se levantam, é o pensamento re-flectindo, pensando no seu modo de operar.
Qual é a importância dessa síntese, além do descobrir como funciona o nosso pensamento?
Essa síntese é uma relação, e ao descobrir e clarificar essa relação, nós não só trazemos à luz o que é a nossa mente (através da análise do seu modo de funcionamento), como a jusante deste processo poderemos dar resposta (mais clara) a questões tais como a identidade e a diferença.
Aqui a pergunta pela possibilidade do conhecimento enreda-se nos movimentos da consciência, mais que propriamente na junção, no ponto de contacto entre sujeito e objecto.
Este duplo debruçar-se (primeiro sobre a coisa, depois sobre o próprio modo de se debruçar - pensamento pensando como pensa) incide especialmente, mais uma vez, no processo e não no «produto acabado»
O ser é o que existe, o geral.
«Sendo é tudo de que falamos na vida corrente, o que pensamos e as nossas relações com o que pensamos, a forma de nos comportarmos perante este ou aquele facto e também o que nós somos e o como somos.»8
O ser é o que é comum nos entes, no sendo.
É que o homem enquanto ente inscrito no ser, e enquanto ser pensante, está aberto ao ser, sensível (em potência pelo menos), ao apelo do ser, colocado diante dele, habitando-o, referindo-se, reportando-se, ligando-se, relacionando-se com o ser, e ao mesmo tempo lhe corresponde.
O homem é este nexo de correspondência , e não só. Podemos falar de uma dialéctica circular fundada na identidade.
Senão vejamos:
1)a identidade é a restituição do mesmo a si mesmo no seio de uma unidade diversa (origem também da diferença);
2)a co-pertença é o elo que liga um termo ao outro, ligando-se a si mesma...
A B
3)o homem, porque nexo de correspondência (devido à abertura, à ligação ao ser, ao facto de ser pensante) é, num certo sentido a consciência do ser, retornando ao berço da identidade e da diferença, ou seja, o homem pensando o ser completa a síntese do uno e do diverso.
A pertença ao ser é parte do ser, porque é transpropriada, e o ser é presença, animando, interpelando, movendo o homem para si. A abertura do homem ao ser revela uma composição una e harmoniosa. A essência do ser revela-se no homem, e a essência do homem revela-se no ser, é isto que interpretamos como a transpropriação de um e outro.
«A existência compreende-se a si mesma, a partir sempre e unicamente das suas propriedades.»9
Esta dialéctica fundamental há muito que vem sendo afogada pelos esforços de ordem e mediação, e como tal tem sido esquecida.
Para o aprofundamento além deste pensar representativo tão arreigado em nós, é necessário um salto.
Tem de ocorrer uma ruptura, entre a representação do homem em categorias estanques, como o sujeito e objecto.
Foi esquecida a intimidade, e este abandono é um salto para longe da representação corrente do homem como animal racional, representação que se tornou relação estéril, porque se tornou sujeito para os seus objectos.
Só através, a partir de nós, se pode o ser desdobrar, estender, desenrolar, manifestar, em suma... ser presente.
Esta relação íntima contudo pode ser bloqueada por um voltar de costas ou tapar de ouvidos. Escutemos o apelo da esquizofrenia moderna, e deixaremos de ouvir o apelo do ser propriamente (pois dilui-se), o que não significa que não sejamos sensíveis a esse apelo. O nome da causa da falta de referente, da esquizofrenia? A técnica.
«O sendo é o que se mostra na experiência diária e constitui a esfera do ôntico. O ser que determina o sendo como sendo constitui a esfera do ontológico.»10
Esta interpelação que o ser faz ao pensamento, pode sofrer um eclipse se o pensamento se torna mudo ao ser, o que é possível quando o ritmo de vida é tal que tudo nos passa à frente como algo dado, óbvio. Neste aspecto, estar no mundo é um estar pobre, pois pouco estaremos com os outros e com nós próprios, pois perdemos os contactos com essas realidades, a função operante e criadora da filosofia enquanto espanto esbate-se e toma forma o ciclo vicioso...quanto mais insensíveis somos ao que nos rodeia, menos o que nos rodeia nos interpela.
«A perda do homem na vulgaridade, ou no mundo das coisas, mostra-se como fuga da sua própria existência.»11
A crítica à modernidade é uma reflexão comum ao pensamento de Delfim Santos, num duplo sentido, no empobrecimento dos arredores da vivência humana, e no em-mesmamento.
O temor de ser diferente, da solidão, do estranho, são tonalidades constituintes do mundo da maior parte dos homens.
Também Delfim Santos comenta a existência inautêntica como efeito deste empobrecimento do homem.
«A existência, e a preocupação que a exprime, pode manifestar-se de forma autêntica ou inautêntica.»12
A leitura que Delfim Santos faz da angústia, é devedora de Kierkegaard, e do modo como Delfim Santos interpretou o filósofo dinamarquês.
Mesmo deslocando o polo de atenção da angústia para a presença ante o proibido, como referência que se sente na escolha, Delfim Santos conserva a tensão na composição do eu.
«O homem é a possibilidade de ser quem nunca chega a ser.»13
O homem não tem espírito, é espírito.
O que é o «espírito»?
É o eu.
O que é o «eu»?
O homem é um eu, e o eu é uma relação que se estabelece consigo própria, não é uma relação que se estabelece com qualquer coisa exterior a si. O espírito consiste no orientar essa relação para a própria interioridade, o eu não é a relação em si, mas o seu voltar-se sobre si própria – ( o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida).
O homem é uma síntese de :
infinito/eterno/liberdade e de finito/temporal/necessidade.
Uma síntese é uma relação entre dois termos, e assim, aqui o eu não existe ainda.
Numa dada relação, por exemplo: A B , existem dois termos.
São respectivamente A e B. Mas a própria relação entra como um terceiro, que se relaciona com ambos esses termos, de maneira singular e de certo modo isolada, ou seja, o A relaciona-se com a relação, independente do B, e a mesma coisa se passa com este, independentemente do A.
Esquematizando na figura:
A B
Cada termo tem uma existência separada no seu relacionar-se com a relação. Repetimos, a relação é o terceiro elemento de si mesma.
Por exemplo existe uma relação entre mim e uma caneta que utilizo para escrever, entendida como alteridade, ela só se me apresenta num horizonte relacional. A consciência, a sensação de algo, é uma relação com algo. Relação é a conexão entre duas ou mais coisas , que se chamam termos da relação , sejam eles objectos , pessoas , factos ou acontecimentos .
A relação estabelece um vínculo de união entre os elementos relacionados e possibilita a unidade dentro da multiplicidade .
No exemplo dado pela caneta, eu sou o sujeito, ela o objecto.
Se esta relação se estabelece sobre si mesma, aí temos o eu.
«Se, pelo contrário, a relação se conhece a si própria, esta última relação que se estabelece é um terceiro termo positivo, e temos então o eu.»14
Mas como pode a relação estabelecer-se consigo, sem um objecto exterior a ela?
É o eu, a consciência de ter consciência de algo?
Ou é a consciência tendo consciência de si mesma?
A questão parece residir na necessidade de um elemento de alteridade, na relação ...
«A consciência sensível simples é a certeza imediata de um objecto externo. Um tal objecto tem, antes de mais, a determinação de ser um este, agora segundo o tempo, aqui segundo o espaço.»15 , dá-se um fluxo temporal no seio do agora (que se esvanece ao mesmo tempo que permanece), e existe um infinito espacial (o aqui nas suas dispersões por vários aquis realizados e possíveis). O aqui e o agora subsumindo sob a sua alçada as suas efectivações e possibilidades, são, como afirma Hegel, «(...)também este aqui contém em si de um modo simples muitos aqui; 16ou ambos são como universal, que nele tem ao mesmo tempo diferenças.)» .Mas desde logo somos alertados, por Hegel(implicitamente) que esta determinação espácio-temporal tem um referente, que é o sujeito. Como se dá a referência quando não há objecto sensível?
«§4 – Visto que a consciência consiste essencialmente na referência a um objecto, é diferente segundo os diversos objectos que tem.
§5 – Ao mesmo tempo porém, o objecto é essencialmente determinado pela relação da consciência com ele e torna-se diferente com o melhoramento da consciência.»17
É o eu, a consciência de ter consciência de algo?
Ou é a consciência tendo consciência de si mesma?
Hegel afirma que a autoconsciência é primeiramente, sensível18e concreta, e ainda que se voltada sobre si mesma, pode ser um objecto sensível e concreto, para si ou para outra consciência.
Parece ser a tese de que o eu é ter consciência de ter consciência de X.
É de difícil representação, mas o texto de Kierkegaard parece deixar em aberto a questão...
A A
Será que só podemos ter consciência da nossa consciência através da necessidade de uma mediação exterior? Talvez para podermos responder à questão, fosse necessário efectuar a experiência de não ter consciência de nada, para tentar apreender se conseguíamos... continuar a ter consciência... de nós.
Qual a natureza do eu? Ela só nos é facultada mediatamente? Até o esquizofrénico, no seu rodopiar de personalidades, mantém o seu eu, a primeira instância que o determina entidade, embora esteja privado de uma identidade.
Quando Kierkegaard afirma que uma relação que se debruça sobre si mesma, só o faz por si(por vontade própria - ?- ) ou por um outro, que ao estabelecer a relação ( terceiro termo) relaciona-se com ela.
Tentando clarificar não simplificando, ( e se a nossa leitura não está mal feita), Hegel e Kierkegaard partem da consciência do acto de ter consciência de algo, para definir o eu.
Mas esta autoconsciência, ou é estabelecida por si, como eu por exemplo quando quero pensar na minha consciência e a torno objecto dela mesma, ou é estabelecida por um outro (abrindo caminho à imanência?), que a faz incidir em si própria.
A relação desse outro que faz a consciência incidir em si mesma, é a relação que permite ambos os termos relacionarem-se. Suponhamos que essa alteridade é Deus. Ao fazer o homem ter consciência de ter consciência, sendo ele o obreiro desse re-flectir da consciência, Deus passa a ser o segundo termo da relação. Logo o homem ao virar-se para a interioridade, ao pensar sobre o seu pensar, relaciona-se com Deus.
Várias remissões são aqui possíveis, mas a mais flagrante a nosso ver, é a teoria agostiniana do homem interior.
«Uma relação desse modo derivada ou estabelecida é o eu do homem; é uma relação que não é apenas consigo própria, mas com outrem.»19
A questão acerca da necessidade de mediação no acesso à consciência da nossa consciência, não fica aqui resolvida, pois a consciência só se dá no seu exercício, qualquer que seja o objecto. A questão que não nos deixa de assaltar, ficará sem resposta... a proveniência desse exercício...ou seja o aqui e agora do eu, da entidade.
Toda a manifestação, doação, é já um resultado. A «fonte» permanece inacessível.
O sapiens sapiens parece ser nas palavras de Kierkegaard, um pequeno arranjo divino, que faz toda a diferença, ao nível do objecto da consciência, isto é , Deus permite a relação da consciência voltar-se sobre si mesma no homem.
Toda a consciência é uma síntese de transcendência e imanência, mesmidade e alteridade. No animal, a diferença reside no facto de essa síntese não poder ser objecto de si mesma.
Qual o papel do desespero em tudo isto?
Se fosse nossa vontade voltarmo-nos sobre a nossa própria consciência, se fossemos apenas nós os responsáveis por esse re-flectir, o acto de não querermos ser nós próprios de não queremos esse re-flectir seria a única prova do desespero.
Mas «a vontade desesperada de sermos nós próprios», essa inclinação para incidirmos a nossa atenção sobre a nossa atenção, isto é, em nós, é prova da existência de dois tipos de desespero, e da conjunção de ambos como síntese do eu.
Ou melhor, porque foi estabelecida (relação) por outrem, pode estabelecer-se consigo, mas este toque da alteridade da relação que a faz sobre si mesma incidir, é também relação, e assim, é relação com quem estabeleceu toda a relação.
Resumindo:
O eu é a conjunção de uma relação que se estabelece a si própria, e que é estabelecida por outro alguém, ou por outra coisa.
Temos então identificados três termos, primeiro termo ( consciência de X), segundo termo (consciência da consciência de X), e terceiro termo, que estabeleceu este re-flectir.
O eu do homem é uma relação que se relaciona consigo própria e com quem a estabeleceu.
As figuras servem apenas para visualizar e para tentar tornar mais claro:
Relação com o termo que flecte a consciência sobre si
A B
Como que se a consciência fosse um elemento mecânico que tem como função incidir sobre as coisas. Se pensarmos que é assim que funciona na maior parte dos animais, e que só o homem pensa neste mecanismo...
A prova para este terceiro elemento, como afirma Kierkegaard, é o facto de que se fosse apenas o nosso eu a estabelecer-se a ele mesmo, só existiria uma forma de desespero, mas existem duas formas de desespero :1)«(...)não queremos ser nós próprios, querermo-nos desembaraçar do nosso eu(...)»;
2) «(...)a vontade desesperada de sermos nós próprios.»20
«(...)o homem se angustia por ser homem, que aquele que mais fundamente sente a sua situação de homem mais preparado para a angústia(...)»21
Kierkegaard não o diz deste modo, mas quase que somos levados a notar o eu como constituído de desespero, pois não pode escapar ao balanço de uma dependência
Que dependência é esta?
Este voltar-se (do foco de atenção) sobre si mesmo, (mediante o acto da alteridade), leva o eu a afundar-se sobre o que o leva a incidir sobre si, isto é, sobre a relação instituidora.
A consciência de termos um eu (fruto da consciência de ter consciência de X), não é algo agradável para a maioria das pessoas. Temos um eu, e o que é que fazemos com ele?
Para que é que serve?
Serve para alguma coisa a não ser para desesperar?
Não queremos ser nós próprios, é desespero, e queremo-nos livrar dele.
Mas como temos esta possibilidade (ou cruz para carregar?) de flectir a consciência sobre si mesma, e uma curiosidade predadora, queremos ao mesmo tempo ser o nosso eu, fazer a genealogia da nossa ipseidade. A escolha parece não ter residência nesta dialéctica. Parece que o homem está determinado por duas forças (desesperantes) antagónicas no seio da sua interioridade.
O eu é incapaz de atingir o equilíbrio.
«No desespero, a discordância não é uma simples discordância, mas a duma relação que, embora orientada, para si própria, é estabelecida por outrem; de tal modo que a discordância, existindo em si, se reflecte além disso até ao infinito na sua relação com o seu autor.»22
Assim, encontramos a escolha como paradoxo. O determinismo que é a síntese do eu, nas duas modalidades do desespero, só aparece numa escolha obrigatória, a saber, o ciclo infinito de uma re-flexão sobre si mesmo. A escolha é determinada. Como pode isto ser?
Quer eu escolha penetrar no eu, quer eu escolha ignorá-lo, escolho sempre o desespero, escolho sempre algo que já está definido à partida. Existe uma possibilidade de escolha com um só caminho, o eu.
Apenas existe o retorno ao eu, através do retorno a si mesmo, mas o retorno à sua mesmidade é o retorno à alteridade que o constituiu.
À maneira de um cachorro que persegue a cauda, a perseguição do eu nunca conduz ao eu, e no entanto existem dois caminhos para o eu. Respectivamente a relação que incide sobre si mesma, e a mesma relação que incide sobre aquilo que a faz sobre si mesma incidir. Este é o paradoxo originário da escolha. Mesmo o não escolher já é uma escolha.
O que é o desespero?
O homem sente uma inquietude.
É o desespero uma qualquer indisposição de ânimo?
De certo, tem apenas pelo facto de se referir à anima.
A esfera da propriedade de ser sujeito (paradoxal), é o berço de todo e qualquer acto de consciência. O eu, para Kierkegaard, estabelece-se mutatis mutandis no mesmo terreno, e do mesmo modo em que se pode aplicar a dialéctica do senhor e do escravo de Hegel, e que analisaremos um pouco mais à frente.
Se a incidência da consciência nela mesma fosse da exclusiva responsabilidade do sujeito, ou melhor, da sua vontade, só existiria o desespero da consciência que não quer sobre si incidir. Mas também é da vontade da consciência sobre si mesma incidir. Isto é, a tal vontade desesperada de sermos nós próprios, quando aquilo que somos é espírito...O espírito é o eu, e o eu é a relação que se conhece a si própria.
O homem só desespera se tiver consciência de ser possuidor de um eu, e se para isso tem de (esporadicamente) se debruçar sobre o seu ser, voltar a ser o que é.
Só podemos não querer ser aquilo que somos, se primeiro tomarmos consciência de que somos, isto é, sendo, e este sendo é a relação que se orienta para si mesma.
É à vontade de sermos nós próprios (segunda e originária forma de desespero) que se reduz e resolve todo o desespero.
Ao incidir sobre si, a relação obrigatoriamente incide (ou tenta incidir) sobre o que estabeleceu toda a relação.
Nesta tensão, consideramos duas notas, que constatamos de vital importância...
Existem duas formas do verdadeiro desespero e duas formas da referência desse mesmo desespero:
1) eu estabelecido por ele próprio- a) a nível da entidade, a consciência não quer incidir sobre si mesma, não quer ser ela mesma;
b) a nível da identidade, o indivíduo não quer ser o que é, projecta-se no virtual, quer ser outra coisa qualquer;
2) eu estabelecido por outrem- a) a nível da entidade, a consciência quer incidir sobre si mesma, quer ser ela mesma;
b) a nível da identidade, o indivíduo quer ser o que é, quer precipitar-se no real, e querendo ser o que é , é porque não o está sendo, o que significa que a consciência não está a incidir sobre si mesma...
Toda esta estrutura não nos é estranha
acessível senão na forma de paradoxo. Este absurdo que não pode deixar de ser, está na natureza do eu. E na natureza do eu está o desespero.
Podemos ter consciência do nosso desespero, ou podemos não ter consciência do nosso desespero, o que não implica que não estejamos desesperados. Podemos ter consciência dele e atribuir-lhe causas que não são as reais. Ter consciência de se estar no desespero, e dele querer profundamente sair, por si – mas por si não o consegue, e o seu , nosso esforço, só nos faz afundar mais nas areias movediças.
O desespero é fruto de uma discordância, entre as duas tendências do nosso eu, que já referimos anteriormente. É bastante inescapável.
Porque a relação se orienta para si, é estabelecida por outrem, esse flectir sobre si mesma é sempre o cão que tenta perseguir a sua cauda, até ao infinito.
«Eis a fórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpa completamente o desespero: orientando-se para si-próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até ao poder que o criou.»23
No geral, o desespero é uma vantagem, que o animal por exemplo não tem.
O homem define-se como sendo um ser desesperado?
O desespero distingue o homem. O homem tem um eu.
«A superioridade do homem sobre o animal, está pois em ser susceptível de desesperar; a do cristão sobre o homem natural, em sê-lo com consciência, assim como a sua beatitude está em poder-se curar-se.»24
Mas o desespero é a maior das misérias e a perdição para o homem.
Kierkegaard refere-se a esta problemática, esquematizando duas posições relativamente à relação do possível com o real:
1)Ascensão : (a passagem do possível ao real – poder-se ser o que se deseja, está contudo abaixo de efectivamente sê-lo – quanto mais perto do real, mais se progride);
2)Queda : (do virtual ao real «(...) a margem infinita do virtual sobre o real dá a medida da queda.»25
Assim, tudo o que não seja desesperar, é uma elevação.
Não desesperar equivale à absoluta ausência de desespero, ou melhor, equivale à destruição da possibilidade de estar desesperado, à aniquilação a cada momento, da possibilidade de ficar desesperado, assim a dialéctica consiste em ficar desesperado aniquilando logo de imediato essa possibilidade, de estar desesperado.
O desespero é vantagem e perdição. Provém do eu. Deve-se ao facto de possuirmos um eu. Ao mesmo tempo, é movimento.
O ser não desesperado é uma afirmação completa do real, logo, é a destruição do virtual, virtual «impotente e destruído», isto é, o real nega o possível.
O desespero é inerente ao eu. Deus ao fazer com que o homem seja esta relação, «como que o deixa escapar da sua mão», fazendo a relação depender de si mesma. A necessidade do desespero fornece a autonomia. O estar preso ao grilhão do desespero é o primeiro passo (incontornável) para a liberdade.
O desespero é responsabilidade do eu. A persistência do desespero só depende do eu, da sua atitude para com o desespero. A tensão desequilibrada e variante das duas tendências do espírito, determina o carácter a e persistência do desespero.
O desespero a cada momento de contrai, e a cada momento se pode extirpá-lo. O desespero é uma categoria do espírito, «(...) que no homem diz respeito, à sua eternidade.»26
«Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem duma doença, o homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, num relâmpago, raramente um medo inexplicável lhe revela a presença interna.»27 Acredite-se ou não que se é desesperado, padece-se de desespero.
O desespero assume várias personalizações. Elas dependem do arranjo entre as forças que compõem o eu.
O eu é composto de finito e de infinito. O relacionar da relação consigo mesma, é a liberdade.
O eu é liberdade, que por sua vez é a dialéctica das categorias do possível e do necessário.
Conscientes ou não, somos desesperados, porque temos um eu.
A consciência interior dá a medida do eu, do desespero.
«Quanto mais consciência houver, tanto mais eu haverá, pois que, quanto mais ela cresce, mais cresce a vontade, e haverá tanto mais eu quanto maior for a vontade. Num homem sem vontade, o eu é inexistente; mas quanto maior for a vontade «, maior será nele a consciência de si próprio.»28
Conclusão:
No intento de abordar os pontos de contacto entre Kierkegaard, Heidegger e a interpretação que Delfim Santos faz destes pensadores, tentámos estabelecer a raiz comum aos três, que na nossa interpretação é o facto de ser na existência, ou melhor, a partir dela, que podemos partir para a compreensão antropológica.
A relação ser/pensar, a definição da filosofia como operar aglutinador, e a tensão existencial traduzida pelo desespero, como tomada de posição no mundo, são os conceitos da afirmação de Delfim Santos, em que o homem é a sua existência.
Somos chamados para uma noção de homem em situação, imerso numa dinâmica existencial, que se apoia no carácter interpelativo e operante da filosofia.
Bibliografia:
Santos, D., Obras Completas- Vols. I-IV, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p.460
Heidegger, M., Le Principe d’Identité in Questions I ,trad. André Préau, Saint-Amand (Cher), Gallimard
Hegel, Propedêutica Filosófica, trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1989
Kierkegaard, S., Desespero, a Doença Mortal, trad. Ana Keil, Porto, Rés Editora
Reflexão sobre alguns pontos de contacto entre o livro bíblico da Revelação e a História do Futuro do Padre António Vieira
Introdução:
Duas noções prenderam a nossa atenção na leitura da História do Futuro.1
A questão da utopia nesta obra do jesuíta, e a exegese do último livro da Bíblia, o Apocalipse.
A utopia é uma projecção ou metaforização que tem como referência a própria realidade que é projectada ou metaforizada.
Tem de haver um ponto comum entre a «realidade efectiva» e as realidades possíveis.
É esse ponto comum que permite o duplo sentido de reconhecimento de ambas por parte do «intérprete».
Neste aspecto não podemos conceber a utopia como um sistema de encarceramento do espaço e do tempo. É antes um desdobrar desse espaço e tempo, na medida em que exprime a infinita potência de um só acto (também ele infinito e inapreensível...) ou seja, a realidade «objectiva», aquela que é consensual para o maior número, é o «acto» acto inapreensível, quer na apreensão das perspectivas que sobre ele se debruçam, (cada um de nós tem a sua...) quer mesmo devido ao carácter virtualmente infinito de variação de perspectivas de cada sujeito. A célebre relação binária entre sujeito e objecto permite uma combinação virtualmente infinita de pontos de vista sobre um número virtualmente infinito de coisas. É óbvio que o escritor da utopia não pode construir nada radicalmente diferente daquilo em que está inserido, sob pena de se tornar impensável (paradoxo) para ele e para os outros. A construção de uma realidade alternativa germina sempre do solo da «realidade objectiva». O grau de variação ou invenção do «utopista», a forma como ele molda os dados que tem, (a matéria prima também de outro qualquer ficcionista) determina a proximidade ou distância do mundo criado. Em suma, tudo germina da realidade aceite, objectiva, da mundividência consensual.
Assim, tomamos esta metaforização, ou projecção não como um encarceramento do tempo e do espaço, mas sim uma fuga do mesmo. A base da realidade consensual é o contexto espácio-temporal. É precisamente isto que a utopia tenta desviar.
A utopia é sempre uma mensagem sobre o aqui e o agora, e ao contrário de encarceramento, é uma fuga, ou uma tentativa de fuga desse mesmo aqui e agora, nunca o perdendo de horizonte.
Não podemos dizer que a utopia crie um antiuniverso, tal é impossível, tanto como o é pensar o que não é pensamento. Pode existir esse desejo por parte do escritor, mas estará sempre condenado a um quadro do qual não pode escapar, tal como um pintor não pode pintar com cores que nunca viu.
Mais do que tudo a literatura utópica, embora projecte espaços paralelos, e tempos diferentes, quer sempre fazer inserir o cerne da mensagem no aqui e no agora.
Nesta perspectiva poderíamos dizer que a HF é uma utopia.
Essencialmente pela estrutura de tempo, e as relações entre as «partes» desse tempo, o passado, presente e futuro, que Vieira combina, e ordena de modo a que num certo momento as funde. Aqui deixa de ser utópico o intento de Vieira, pois dissolve o tempo.
Esta é uma das nossas teses.
Essa dissolução ocorre no âmbito de um propósito cósmico.
Os desígnios de Deus dão estrutura à Bíblia, e nela os seus intentos dissolvem o tempo, especialmente no culminar do espaço e tempo cósmicos, (quer dizer intemporais e não espaciais) que desembocam no Apocalipse.
Em rigor Deus não profere uma profecia, é omnisciente. O tempo não é relevante para ele, só para o homem, é laço de memória do limite humano, é cruz que se carrega na via-sacra do temporal. Quer isto dizer que está tudo fixado desde o início, e que o desenrolar do tempo humano é irrelevante para um Deus que já fixou o desfecho da história e para quem não existe tempo, pois se o tempo é uma sucessão de instantes, e se no início era apenas o verbo, o logos divino, então a omnipresença divina não se dá apenas no espaço, mas também no tempo. Deus não conhece apenas os futuros, vive-os.
Mas está além quer do provável, (ou até muito ortodoxo) é apenas uma hipótese (não passa de uma conjectura), quer do âmbito deste trabalho.
São estas as duas traves-mestras que nos nortearam na análise da História do Futuro.
A utopia e a exegese da Revelação, com particular incidência sobre a vertente de pensamento milenarista.
As remissões neste trabalho são sempre em direcção à edição da obra de Vieira já citada, e à Bíblia, cuja edição utilizada, é a recente edição dos Monges Capuchinhos, que é uma edição com alguma projecção junto dos estudiosos do Livro.
A esfericidade do tempo
Para Vieira, o homem é um ser de esperança. Queremos com isto dizer que na sua natureza, a aspiração ao conhecimento, e em especial, ao conhecimento do futuro está profundamente constituída. E como queremos a antecipação do que é agradável, quer seja em conhecimento, quer seja em efectivação na acção, o conhecimento do futuro, o seu desejo, é esperançoso.
A diferença entre divindade, e homem, está na posse dos conhecimentos futuros, ou melhor, nos conhecimentos do futuro. Se Adão no paraíso se apoderou do conhecimento do Bem e do Mal, Deus não quis que tivesse acesso ao fruto da árvore da vida e se tornasse imortal. A subjugação ao tempo (mortalidade), às dores do parto, a ao árduo trabalho para retirar sustento da terra, são metaforicamente, sujeições ao tempo, na medida em que as dores do parto são as dores da geração e do carregar essa geração durante nove meses, e na periferia do jardim do Éden o ser humano sofre as consequências da corrupção, ou seja, envelhece. O árduo trabalho para retirar sustento da terra não se limita ao esforço físico, que acelera a decrepitude, mas aplica-se também aos esforços humanos sujeitos à mudança das estações (tempo circular), e entre outras coisas, ao facto de que para evoluir na sua ciência do Bem e do Mal, o ser humano tem de actuar civilizacionalmente, isto é, os esforços e avanços não se limitam ao esforço de uma vida particular, tem de ser passados e desenvolvidos de geração em geração.
A noção de castigo, devido à transgressão, em que o tempo é factor determinante aparece na frase em que Deus deixa bem claro:
«E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, todos os dias da tua vida.» Génesis 3:17
Não é só o facto de não haver tréguas para a dificuldade, que está aqui patente.
É o facto de o Senhor mencionar, que é para todos os dias da vida...que está reservado o sacrifício. Os castigos gregos de Prometeu, Tântalo, Sísifo, etc., não deixam de ter remissão aqui, sendo sacrifícios ao tempo...à eternidade do suplício. Penoso trabalho para ser «desfrutado» durante toda a vida. Faz parte da vida ser acompanhada de martírio.
A esperança reside no futuro, nos tempos melhores, do porvir.
Mas a esperança num futuro melhor, é legitimada pelo facto de Deus condenar o homem ao sofrimento? É que esta condenação é um castigo, não uma maldição. Há esperança num futuro melhor, e é necessário que assim seja, pois não se pode conceber uma vivência decente sem esperança ou com receio do futuro. É um castigo muito irónico, pois o homem desobediente é lançado por sua conta e medida para fora da terra idílica, e como queria ser igual a Deus vai ter de se servir das suas obras, e do seu livre arbítrio para se governar a si e aos outros. Vai depender daquilo que não era suposto ter.
Mas por falta de explicação melhor, talvez a memória intemporal e original de uma ligação ancestral com o Criador, seja o élan da esperança. Porque um dia estivemos ligados ao Criador, temos ainda resquícios dessa felicidade na memória, e ansiamos a concretização futura de algo que como que ficou quebrado... a re-ligação.
Mais uma vez, tudo isto não teria sentido se a Bíblia, entendida como fruto de inspiração divina, não possuísse um sentido escatológico. Esse sentido revela-se (mas não só) com a máxima força, no Livro da Revelação. Curiosamente um livro que versa sobre o futuro na senda de uma profecia do passado, a primeira profecia.
O último livro da Bíblia chama-se «A-po-ká-ly-psis», que é uma palavra grega, que modificada para a forma corrente de Apocalipse, tem na sua etimologia o significado de «exposição», «exibição». Resolveu-se denominar esse livro de Revelação.
A Revelação versa sobre o «dramático apogeu do grandioso propósito de Jeová» que é o Deus das Escrituras.
O livro da Revelação não é apenas o culminar, o desfecho de uma história que principiou no Génesis há cerca de 6000 anos. É também o culminar de um acto divino que é tão só o de santificar o Seu nome perante toda a criação (Ezequiel 25:17;38:23).
O Génesis relata a Criação, inclusive o zénite da criação que é o ser humano. Relata também a primeira profecia, proferida pelo próprio Criador no paraíso. O episódio encerra em si um significado muito profundo, e são intervenientes uma serpente acabada de ser usada para enganar a primeira mulher, Eva, que por sua vez persuadiria o seu marido Adão para também violar a lei do Criador. No decorrer do julgamento do casal pecador, Deus profere, como já foi notado, a primeira profecia, que aqui transcrevemos:
«Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.» Génesis 3:15
Esta profecia estabelece o tema para toda a Bíblia, especialmente para o livro da Revelação.
Que propósito é este, o do Deus dos hebreus?
Que significa santificar o seu nome perante toda a Criação?
A Revelação explica detalhadamente o término triunfante da questão. Ajuda também a entender as questões envolvidas e a obter uma visão geral dos propósitos divinos.
O primeiro livro fala da Criação, o último revela o Criador na sua intenção.
O que significa a primeira profecia, proferida pelo Inspirador dos profetas?
Estas questões serão analisadas um pouco mais à frente, no decorrer desta exposição.
Deus deixa-nos às escuras, sem a mínima ideia daquilo que pretende de nós, do que é suposto que façamos e sejamos?
Se dermos um pouco largas à boa vontade da nossa interpretação, poderemos encontrar a epopeia na revelação divina nos primeiros versos do Pentateuco. Deus afirma, acontece, no momento em que formava Adão, já sabia o que ia acontecer. Quando trouxe à existência o seu «braço direito», o segundo na hierarquia celeste, Deus já sabia o que iria suceder. No entanto, não só a história se concretizou, como Deus, dela deu testemunho ao homem.
Á primeira vista, seria uma maldade inimaginável saber de todos os crimes cometidos contra o ser humano, pelo ser humano, contra o Espírito Santo, pelo ser humano. Mas faz tudo parte de um propósito divino, o de santificação do nome de Deus perante toda a Sua obra. E é também um imenso teste de personalidade.
Tudo já aconteceu na mente divina, tudo já está presente e como que decidido nos desígnios de Deus. Deus diz como vai ser, e é assim que vai acontecer... Mas não existe um destino, o que existe é uma omnisciência intemporal, e que é revelada ao homem através da profecia.
Existe uma conjugação, entre o desejo de conhecer os futuros por parte do homem, tal como é propósito divino revelar os seus intentos. E se já no paraíso o ser humano era pródigo em desejos pelo proibido, e sua virtude consistia em vencer a sua tendência como prova de respeito, também na profecia devido ao seu carácter enigmático, o homem tem de se esforçar para penetrar nela, dependendo o seu sucesso não só do seu ( e do de outros) engenho, como do tempo certo, em que Deus deixa fazer-se luz sobre a profecia. Parafraseando Pessoa, Deus quer, o Homem esforça-se por entender, a profecia é deslindada. A revelação da profecia só ocorre quando o que profetiza se torna efectivo, pelo que se for deslindada antes da ocorrência, tanto mais o valor profético é acentuado.
«Como é inclinação natural do homem (e muito mais depois da natureza corrupta) apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo (...)
Tão mal sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus (...) antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.»i
Mas, tudo o que é desejado se vê rodeado por poder, e abusos de poder. Se todos queremos saber com que linhas se cose o futuro, quer por temor, ou a favor do sonho e antecipação do porvir, os detentores desse saber ganham poder e ascendente sobre nós.
E como há sempre abusadores e impostores ( quer saibam que o são, quer não o saibam), é necessário um critério para poder avaliar o carácter profético da profecia, que só terá uso antes do discernimento do seu valor de verdade, o que torna muito difícil avaliar uma profecia, uma vez que só quando ela se concretizar, saberemos se era realmente profecia ou não, mas aí já pouco uso terá para nós.
Quais os parâmetros de avaliação profética?
O conhecimento virá (utilizando as expressões de Vieira):
1) através do lume natural do discurso (razão, observação do tempo, costumes, épocas, etc., e estado do mundo);
2) através do lume sobrenatural (Deus revela, dá a profecia).
Ou seja, podemos clarificar o valor profético e a autoridade da profecia através da inferência da especulação natural própria, e através da revelação sobrenatural e divina.
Não queremos aqui induzir a um combinado culinário, em que tendo nós os ingredientes, facilmente cozinhamos um caldo adocicado, isto é, mesmo verificando a solidez dos parâmetros já citados, tudo depende do tempo certo de revelação, como por exemplo o livro da Revelação, em que é certo, quase indubitável ser de inspiração divina, e por isso canónico, e cujo significado oculto tem vindo a ser estudado e debatido ao longo das eras, e ao longo das eras, se tem aplicado o seu tom profético final, mas até hoje, com consequente não verificação efectiva.
Porquê? Porque ainda não chegou o tempo próprio.
As profecias dos profetas são archotes que iluminam trechos não de espaço, mas de tempo. O resto pode ser inferido pela razão, pelo lume da razão, como afirma Vieira.
Os livros dos profetas são o princípio e o fim, mas o caminho intermédio, de exegese e estudo ruminoso, tem de ser percorrido por nós.
A natural obscuridade das profecias pode ser minimizada com a ajuda dos apóstolos, e dos padres doutores da igreja.
Parafraseando o jesuíta, no labirinto dos futuros, as profecias e os doutores são as tochas que alumiam, o entendimento e o discurso, são o fio de Ariadne.
Grande parte da História do Futuro debruça-se na clarificação do espírito profético. Sendo o livro Anteprimeiro o alicerce de todo o conjunto, pois examina e explana os critérios e questões relativos ao verdadeiro conhecimento da verdadeira profecia.
Não está no âmbito deste trabalho, fazer essa análise detalhada, pelo que passamos ao ponto seguinte.
Existem duas instâncias a clarificar como base de inferência, as profecias canónicas presentes na Bíblia e não só, legitimadas por concílio ou tradição através do consenso entre os padres e coerentes com as Escrituras; e as profecias não canónicas mas no caso de Vieira, dignas de serem tidas em conta, prenhes do mesmo espírito profético, proveniente de Deus. Se as profecias canónicas recebem a sua autoridade de Deus, as outras recebem autoridade pelos seus efeitos...
Às profecias:
1) canónicas
2) inferências rigorosamente extraídas das profecias canónicas e Escrituras;
3) não canónicas ( mas de certeza moral e salvaguardadas pela verificação dos efeitos);
4) e as que ficam dentro da probabilidade opinativa – não provadas, investigadas, etc.
corresponde um valor de:
1) verdadeira com certeza de fé;
2) verdadeira com certeza teológica;
3) verdadeira com certeza moral;
4) verdadeira com certeza provável.
Estes são os quatros pilares da obra. Vamo-nos cingir às profecias canónicas.
É tese deste trabalho que a declaração divina proveniente da divina omnividência «temporal», é para o ser humano profecia, e que se é proferida por Deus, então vai acontecer, dependendo a visão humana da mesma apenas da justa e correcta interpretação, que por sua vez, sofre o mais importante concurso da vontade divina.
É tese deste trabalho dizíamos, que se o futuro está descrito, delineado a nível geral, por Deus, então a profecia é um elemento dissolvente do tempo, como síntese dos três momentos temporais, escrita no passado, interpretada no presente sobre algo do futuro.
O tempo para Vieira tem tal como o mundo, dois hemisférios:
1)superior e visível e que é o passado;
2)outro inferior e invisível que é o futuro.
No meio dos dois ficam os horizontes do tempo que são os instantes do presente que vamos vivendo. Horizontes onde o passado termina, e o futuro vai começando.
O presente é o instante, não pertence a uma metade da esfera, nem à outra. A perpetuidade do tempo reside num passado que sempre se acaba, é passado, e um futuro que sempre começa. Este limiar entre um eterno começar e um eterno acabar é o presente. Mas o presente só tem razão de ser como algo abstracto, pois assim que pensamos nele, já passou e já outro veio e passou também.
Os habitadores do futuro, são os antípodas do passado, e a novidade daquilo que irá acontecer no futuro, vem não só do facto de ainda não ter acontecido, como do facto de nunca haver acontecido antes. Ou seja, a novidade, sem ser considerada como instante abstracto, estabelece a relação entre o passado, o futuro e o profético. O futuro encerra em si um valor profundo sobre o presente, conhecê-lo, se for pernicioso permite precaução, se for favorável permite antever sonhando, mas de qualquer modo, o conhecimento do futuro aplica sempre um referencial prático ao instante, ao presente.
O símbolo do Millenium, é uma serpente que morde a sua própria cauda.
Referimos a circularidade do tempo em Vieira, não só porque é uma ponte para a introdução ao pensamento milenarista, como nos permite clarificar que o desfecho cósmico daquilo que foi predito, é um retorno a si da profecia divina, tal como o é o preciso ponto em que a serpente morde a cauda. Não nos referimos aqui a um tipo de eterno retorno, mas a uma circularidade temporal que a profecia reflecte e que Vieira tão bem mostra e explora. O cumprimento da profecia relativiza o tempo até torná-lo secundário, podendo nós caminhar radicalmente para uma noção na qual ele passa a ser supérfluo. A autoridade e milagre da mesma provém do salto que dá no tempo, coisa que só a divindade pode fazer, ela é uma incursão do divino no profano. É uma manifestação, cujo valor principal é esse mesmo, ser manifestação do divino, mais do que ser uma excepção à regra. Se todos tivéssemos a capacidade de prever o futuro, não existiria uma noção de profecia. Não só a profecia reflecte um esbatimento do tempo, que a ela não resiste, como no caso do Deus judaico-cristão, é uma intervenção de carácter teleológico, pois é não só a comunicação do que vai acontecer, como é peça de um puzzle, de um propósito teleológico, intencionado e predito, a santificação do nome do Criador, perante toda a Criação.
Salta do tempo a profecia, porque foi predita, e porque foi predita, prevista antes da existência do tempo, na «mente» do Criador. E é na mente do Criador, que o tempo se torna circular, pois torna-se essencial poder provar ao Criador que nos esforçamos, e é condição necessária de efectivação do livre arbítrio.
Se Deus tivesse evitado a concepção de Hitler, não lhe teria dado a oportunidade de escolher entre cometer os crimes que cometeu, e proceder de outra forma.
A revelação é a obra que mostra a imensidão infinita da sabedoria eterna, intemporal, de Deus, e a sua acção, ao mesmo tempo que mostrando limites ao homem lhe dá uma lição de humildade.
O problema na base da profecia, e do crédito da mesma, não é só o da sua veracidade, é o problema central bíblico, é o problema da autoria. O problema da autoria tem exemplos espalhados por toda a obra bíblica, quer seja o desejo de poder e adulação pelo primeiro anjo caído, quer seja por Moisés ter afirmado a sua autoria quando fez a água jorrar da rocha, quer tenha sido o bezerro de ouro, a idolatria, que revela ingratidão e vai contra o propósito divino de santificar o Seu nome.
A relação de Deus com a Sua Criação é muito simples, Deus e a Sua vontade revelam-se na Sua Criação.
As profecias são próprias do tempo em que a igreja não as consegue (ainda) interpretar, pois ordenada e sucessivamente, o tempo vai dando sinais, sinais do que dizem as profecias, e as profecias são esses sinais (quando verdadeiras).
O livro da Revelação, como é descrito por Vieira, é um livro fechado não a sete chaves, mas a sete selos, que se vão rompendo gradualmente revelando a Revelação. Estamos no reino do simbólico, sete é o número da perfeição.
Este mundo, onde essas profecias se revelam, é um teatro, a História é a comédia de Deus, e se uma peça teatral tem partes, a História tem idades. A aparente maravilha não entendida da História é o suspense com que Deus vai prendendo e chamando a nossa atenção.
A profecia é o sinal da vontade de Deus, a efectivação da profecia é o retorno do mundo, do tempo à palavra do Deus que a proferiu. Não só o acontecimento ocorre antes de ocorrer, na mente todo-poderosa do Todo-Poderoso, como quando realmente se efectiva o acontecimento descrito na profecia o tempo é diluído pois a palavra passada torna-se ocasião presente.
A boca da serpente (como símbolo do Millenium, percebe-se a intenção da escolha do animal, mas para a simbologia Cristã, a escolha é um pouco infeliz) volta a morder a sua cauda. Diluir a profecia é diluir o tempo.
Quando digo, «– Amanhã vai chover.», quando chove, o que eu previ é a realização das palavras passadas, a palavra torna-se acção, e não só o tempo se esbate, como a profecia deixa de o ser para ser «realidade», como há uma transição do reino das palavras para o reino das coisas.
Se com o avançar do tempo avançamos para o desfecho do que Deus disse, cada vez mais estaremos próximos de decifrar o significado profético (não esquecendo que Vieira explora a fé através da profecia) , pois hoje:
1)descobrimos mais porque olhamos de mais alto
2)distinguimos melhor porque vemos de mais perto
3)trabalhamos menos porque achamos o «caminho livre», mais desimpedido
A)o caminho está mais desimpedido porque os nossos antepassados cavaram e varreram aquilo que nos podia obstruir o empenho e o caminho
B)vemos de mais perto porque estamos mais chegados ao futuro
C)olhamos de mais alto porque somos anões nas costas de gigantes
O milenarismo foi a doutrina partilhada por diversos escritores dos primeiros séculos após o nascimento de Cristo (e também de certas seitas cristãs modernas), segundo o qual Cristo reaparecerá na Terra para reinar durante mil anos.
O milenarismo tem uma raiz hebraica e é fundamentado nos profetas bíblicos e foi assimilado pela religião cristã, e a partir do monge calabrês Joaquim de Fiore, a tónica foi-se acentuando no livro do Apocalipse.
Durante os vários séculos que se seguiram, foi-se compondo um corpo doutrinário que era a tradução de uma reflexão sobre o sentido da «Grande História», da história universal, nomeadamente no sentido teleológico. Óbvio é que o fim dos tempos foi, e é uma preocupação vital para este pensamento, pois Deus tem um fim, finalidade para nós, e porque a história bíblica pouco se importa com o tempo, ele só interessa como acessório do fito divino, e porque a escatologia das Escrituras é dual, existe o Bem e o Mal, e existe esse tal desenrolar das coisas de Deus no tempo, e no fim haverá um julgamento, que só é fim para o que não é de acordo com a sua natureza, a jusante de tudo isso... tudo decorrerá de acordo com a vontade do Criador...para sempre, o que é eterno, está fora do tempo, o tempo é um acidente necessário nas coisas dos homens e de Deus.
A Revelação
A revelação foi feita a João, pescador iletrado, cuja tradição identifica com o apóstolo João, mas cujas provas não são suficientes sequer para tal afirmação, mas são suficientes para dizer que João era irmão de Tiago, e filho de Zebedeu, um dos doze apóstolos.
O Apocalipse é um livro carregado de imagens grandiosas e simbólicas acerca do fim dos tempos. Encaramos o fim dos tempos, não só como no sentido de um fim deste sistema de coisas, como encaramos o fim dos tempos numa dupla acepção: como consequência «política» decorrente do fim deste sistema de coisas que se resolve num novo governo por parte de Deus, e como consequência desta consequência, isto é, como consequência da instauração de um governo eterno, o tempo deixa de ter sentido, dissolve-se / acaba-se.
Acreditamos, tal como Vieira e Joaquim de Fiore, que na revelação a João não se encontram somente meras mensagens de fatalidades ou cataclismos, ou visões sobre o fim do mundo, mas também mensagens de revelação dos propósitos divinos.
«É melhor o fim de uma coisa do que o seu princípio (...)» Eclesiastes 7:8
Toda a Bíblia comparada com a Revelação, é um mero descrever, onde sem dúvida encontramos um sentido, mas sem a força do último livro, onde Deus revela toda a finalidade da Sua Obra.
A finalidade é :«Desta maneira, manifestarei a minha grandeza e a minha santidade, e far-me-ei conhecer aos olhos de muitas nações. Então, reconhecerão que eu sou o Senhor.(Javé)» Ezequiel 38:23
Mas deixemos a maior parte do corpo do último livro da Bíblia, para nos focarmos na última parte do último livro.
«Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.» Génesis 3:15
Esta foi a primeira profecia bíblica.
O reinado milenar de Jesus Cristo começará depois da clausura do anjo caído e dos seus seguidores, no abismo onde ficarão retidos durante mil anos, durante os quais deixarão de apoquentar os seres humanos. É Cristo que possui a chave do abismo e que vai ao encontro dos futuros prisioneiros, coloca-os no abismo, fecha o abismo para que eles, os anjos caídos não desencaminhassem as nações da Terra. Mais uma vez aqui, Deus assegura sempre a possibilidade de escolha, de livre arbítrio até às últimas consequências, na medida em que o reinado milenar livre do mal, permitirá após a derradeira soltura deste, a decisão aos humanos de qual o sistema de governo que preferem. Se o de Deus, se o de outro.( ver Revelação 20:1-3)
O pecado original não foi a desobediência de Adão, foi sim o orgulho daquele que até então se posicionara muito perto do Criador. Esse orgulho desmedido resultou no desencaminhamento de Adão, e a partir daí o inimigo de Deus tudo tem feito para conseguir o maior número de fiéis para a sua causa. O homem, na Bíblia, sendo o ponto alto da Criação, é uma mera marioneta nas mãos daquele que apenas persiste no seu orgulho.
A guerra movida aos elementos humanos imbuídos de espírito missionário (que são a mulher-organização – simbolismo que significa tradicionalmente que a figura de Eva simboliza a figura da igreja(qual, não sabemos) que é esposa de Cristo- isto é, a falsa religião que recebe a sua autoridade do anjo pecador, persegue a verdadeira religião que é a mulher, a igreja instituição que ama a Deus.
O descendente da mulher é Cristo, que foi mordido no calcanhar quando foi crucificado pelos poderes corruptos terrenos, e foi mordido no calcanhar, porque foi um «ferimento» quase sem importância, ao passo que pisará, esmagará a cabeça da serpente. Cristo acabará com o autor do pecado original, onde reside o atrito bíblico sobre a questão da autoria, e da autoridade. (Ver Revelação capítulos 18 e 19)
O descendente humano da serpente é a falsa religião, a política e a alta economia.
Antes de prosseguir, é necessário advertir que a nossa interpretação não está vinculada a nenhuma confissão, a sua referência aplica-se apenas ao texto bíblico.
Inimizade entre a serpente e a Igreja(mulher), e entre os descendentes de ambos.
O descendente da mulher é Cristo e os 144.000 seguidores ungidos, onde Cristo triunfará esmagando a cabeça da serpente.
Enclausurados os caídos, pode o reino milenar começar. Até ao fim deste toda a Terra tenderá a parecer-se com o jardim Éden. São literalmente mil anos, esta designação aparece três vezes na Revelação 20:5-7. O dia do julgamento, dura mil anos, pois um dia para Deus, são mil anos para os homens. Nestes mil anos serão ressuscitados todos os seres humanos que já nasceram e morreram na Terra, menos aqueles que cometeram pecados contra o Espírito Santo. Após esses mil anos os prisioneiros do abismo serão soltos para o teste final de personalidade do homem, fomentando ou tentando fomentar a guerra entre os humanos que durante algum tempo conseguiram a harmonia, e tentarão derrubar Nova Jerusalém. Mas esta tentativa será aniquilada e com ela os decaídos desobedientes. (Ver Revelação 20:9b-10a)
Os que passarem no teste de fé, passarão a ser habitados com o Espírito de Deus, tal como Adão o foi, e Deus voltará a viver entre os homens.
«Eu sou o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim;(...)» (Ver Revelação 21:5,6a)
A utilidade da HF não é só satisfazer a curiosidade sobre o Futuro. As coisas boas que estão para vir são engodo para a concretização do propósito divino.
«Por isso, quer a Providência Divina que as sentenças estejam escritas antes da execução, e que haja quem as interprete antes do sucesso.»ii
Vieira foi missionário, talvez seja um dos 144.000 ungidos. Quem sabe?
Tentámos aqui fazer uma sinopse arqueológica entre algumas noções que se destacaram na leitura da obra inacabada do jesuíta. Poderíamos ter seguido o caminho comum, levantando também a questão do quinto império e do lugar que Vieira acreditava ser o dos portugueses na história mundial e escatológica. A tarefa da pregação, tal como está referida no Livro, desempenhou um papel vital na difusão religiosa por todo mundo. É um fenómeno espiritual que não pode ser reduzido a uma curiosidade de uma confissão. E esse grandioso fenómeno, foi participado pelos portugueses. Somos um povo como qualquer outro, o que nos levou para os Descobrimentos não foi apenas a falta de prata na Europa e o engodo do ouro de Ceuta, e as especiarias. O homem não se move só por talentos de prata, é certo que levámos os vícios, mas também as virtudes, da nossa igreja e que também causariam dissabores ao próprio Vieira, a fé também moveu montanhas de homens, e homens montanhas de fé como por exemplo Vieira. Impregnados com o espírito missionário temos milhares a sair deste pequeno berço, para talvez morrer no imenso sarcófago do mundo, missionários que talvez como Vieira, aprendiam a língua dos nativos, iam de facto até eles.
«E este grande Eufrates é aquele grande mar, pelo qual os Portugueses (maior façanha e ventura que a do outro Ciro) fizeram a passagem a pé enxuto nas suas grandes naus da Índia, para levarem nelas a Fé ao Oriente e trazerem tantos reis orientais à obediência e sujeição da Igreja.»iii
Na página 235 da edição por nós utilizada, explana-se toda a convicção missionária de Vieira. O diabólico da idolatria é combatido pelos missionários, levando não só o Nome de Deus, mas também e com Ele, a salvação.
Estes homens foram salvar outros. Poderia ser assim o epitáfio dos Descobrimentos.
Com ele claramente se antevê o pejo que Vieira tinha da escravatura. A salvação não está num convés de um navio negreiro, nem num cabresto no pescoço dos nativos.
Jesus expulsou os vendilhões do templo, Vieira se pudesse (vontade não lhe devia faltar) expulsaria o comércio de estar misturado com a evangelização.
As teses que procurámos expor passaram pela exposição do carácter de compromisso além utópico desta obra de Vieira. De compromisso por causa do modo como o tempo é exposto, e como é feito o referente à actualidade, diferente do referente da utopia.
A utopia e a exegese do Apocalipse foi por nós justificada na intenção de mostrar como o espaço e o tempo são diluídos, sendo essa diluição a diferença (além do referente «não terreno» do livro do Padre António Vieira) entre utopia e a HF.
A profecia é o elemento que opera uma fuga fugidia, foge do tempo e espaço objectivo para a ele retornar.
Um dos motivos da grande originalidade de Vieira, está na forma literária utilizada, que surge fazendo a fusão das partes do tempo criando uma utopia sem referente. E o paradoxo habita esta noção se considerarmos que com a dissolução do tempo deixa de ser utopia, sendo uma exposição no essencial utópica.
A esfericidade do tempo, e a profecia como dissolvente espacial, foram as pedras de toque para a compreensão do futuro delineado por Deus, e a cujas profecias, Vieira tantas vezes recorre, para explicar os seus pontos de vista, e para deixar a reafirmação da mensagem da Bíblia: o desfecho trará tempos melhores
Conclusão
Tentando fugir do lugar comum que é enaltecer elementos da alma histórica nacional, por reacção a outras modas que permeiam o espírito presente, tentámos expor algumas considerações sobre uma obra capital do pensamento de um autor que se afigura como dos mais originais a utilizar a língua de Camões.
Grande exegeta das Escrituras Sagradas, Vieira, a nosso ver, mistura com toque sóbrio de génio a utopia, ou a leve brisa utópica que medeia entre o fim do Renascimento e a alvorada da época Moderna, com a revelação e fenómeno da fé...ao mesmo tempo que se transforma em testemunha da revolução humana dos Descobrimentos.
Em épocas de grandes mudanças germinam as grandes obras. Esta afirmação não é um encómio forçado, mas tão só a constatação do valor de um autor mais desprezado por pseudo ateísmo ignorante que por pouca importância ou originalidade das suas ideias, teve a sorte de nascer no grande Portugal de Quinhentos, azar de ter convicções antropológicas e teológicas, que mesmo depois de morto ainda parecem persegui-lo.
Parece existir uma estreita ligação entre os homens e as voltas violentas da história, os homens fazem a história e ela a eles.
São Tomás Morus no seu clássico Utopia, alude às viagens de Platão, não a Siracusa, mas nos horizontes do espírito. Esta alusão sai da boca de um personagem que é um marinheiro português.
Esta pequena comparação não é uma mera curiosidade, é que na História do Futuro o u-topos e o u-cronos não acontecem. E não acontecem devido a uma diferença muito importante e que é a posição fulcral da revelação no plano da obra.
Se o denominador comum da República de Platão, ou da Utopia de Morus parece ser um télos, isto é, uma construção que se quer paradigmática ou crítica, o desfolhar da HF remete-nos não para criações fictícias, pois o carácter profético tem a sua razão de ser na verdade e certeza dos acontecimentos do porvir, mas para uma prova, milagre que é a revelação, a «mão» de Deus nas coisas dos homens que não desloca nem projecta a realidade, nem metaforiza essa mesma realidade na sua síntese espácio-temporal.
Como podemos então conceder a Vieira, laivos inspiradores de utopismo, isto é, se entender-mos a utopia como um sistema de encarceramento do tempo e do espaço, remetendo para um lugar imaginário, ou melhor, ficcionado, em menor ou maior grau?
A interpretação bíblica que serve de pano de fundo ao conteúdo é a resposta.
Podemos fazer a distinção entre discurso profético ou utópico, mas as únicas diferenças entre ambos são a necessidade e a possibilidade, isto é, enquanto no discurso profético é necessário que exista um acordo entre o profetizado (antecipado) e o que ulteriormente acontece. A raiz do discurso utópico é a da possibilidade, pois ao criar um «reflexo» existe sempre a possibilidade ou desejo de concretização, ou a possibilidade de resolução de problemas, caso se opte,, caso se olhe...o eterno «se».
O autor viaja não na razão, mas na fé.
Neste livro, Vieira assume o tratamento do tema do iminente.
Iminência de uma situação, de uma realidade.
O carácter de necessidade da efectivação dos acontecimentos futuros, coloca, a nosso ver, o autor, o relator, como que numa situação intemporal, porque nos três estados temporais ao mesmo tempo, Escrituras(passado), Bandarra e acontecimentos presentes(presente), e descrição de acontecimentos futuros no futuro.
Ao invés de referirmos aqui uma ucronia, referimos uma pancronia que dissolve o tempo (como sucessão contínua de instantes) utilizando como esteira o horizonte do pensamento.
Duas noções prenderam a nossa atenção na leitura da História do Futuro.1
A questão da utopia nesta obra do jesuíta, e a exegese do último livro da Bíblia, o Apocalipse.
A utopia é uma projecção ou metaforização que tem como referência a própria realidade que é projectada ou metaforizada.
Tem de haver um ponto comum entre a «realidade efectiva» e as realidades possíveis.
É esse ponto comum que permite o duplo sentido de reconhecimento de ambas por parte do «intérprete».
Neste aspecto não podemos conceber a utopia como um sistema de encarceramento do espaço e do tempo. É antes um desdobrar desse espaço e tempo, na medida em que exprime a infinita potência de um só acto (também ele infinito e inapreensível...) ou seja, a realidade «objectiva», aquela que é consensual para o maior número, é o «acto» acto inapreensível, quer na apreensão das perspectivas que sobre ele se debruçam, (cada um de nós tem a sua...) quer mesmo devido ao carácter virtualmente infinito de variação de perspectivas de cada sujeito. A célebre relação binária entre sujeito e objecto permite uma combinação virtualmente infinita de pontos de vista sobre um número virtualmente infinito de coisas. É óbvio que o escritor da utopia não pode construir nada radicalmente diferente daquilo em que está inserido, sob pena de se tornar impensável (paradoxo) para ele e para os outros. A construção de uma realidade alternativa germina sempre do solo da «realidade objectiva». O grau de variação ou invenção do «utopista», a forma como ele molda os dados que tem, (a matéria prima também de outro qualquer ficcionista) determina a proximidade ou distância do mundo criado. Em suma, tudo germina da realidade aceite, objectiva, da mundividência consensual.
Assim, tomamos esta metaforização, ou projecção não como um encarceramento do tempo e do espaço, mas sim uma fuga do mesmo. A base da realidade consensual é o contexto espácio-temporal. É precisamente isto que a utopia tenta desviar.
A utopia é sempre uma mensagem sobre o aqui e o agora, e ao contrário de encarceramento, é uma fuga, ou uma tentativa de fuga desse mesmo aqui e agora, nunca o perdendo de horizonte.
Não podemos dizer que a utopia crie um antiuniverso, tal é impossível, tanto como o é pensar o que não é pensamento. Pode existir esse desejo por parte do escritor, mas estará sempre condenado a um quadro do qual não pode escapar, tal como um pintor não pode pintar com cores que nunca viu.
Mais do que tudo a literatura utópica, embora projecte espaços paralelos, e tempos diferentes, quer sempre fazer inserir o cerne da mensagem no aqui e no agora.
Nesta perspectiva poderíamos dizer que a HF é uma utopia.
Essencialmente pela estrutura de tempo, e as relações entre as «partes» desse tempo, o passado, presente e futuro, que Vieira combina, e ordena de modo a que num certo momento as funde. Aqui deixa de ser utópico o intento de Vieira, pois dissolve o tempo.
Esta é uma das nossas teses.
Essa dissolução ocorre no âmbito de um propósito cósmico.
Os desígnios de Deus dão estrutura à Bíblia, e nela os seus intentos dissolvem o tempo, especialmente no culminar do espaço e tempo cósmicos, (quer dizer intemporais e não espaciais) que desembocam no Apocalipse.
Em rigor Deus não profere uma profecia, é omnisciente. O tempo não é relevante para ele, só para o homem, é laço de memória do limite humano, é cruz que se carrega na via-sacra do temporal. Quer isto dizer que está tudo fixado desde o início, e que o desenrolar do tempo humano é irrelevante para um Deus que já fixou o desfecho da história e para quem não existe tempo, pois se o tempo é uma sucessão de instantes, e se no início era apenas o verbo, o logos divino, então a omnipresença divina não se dá apenas no espaço, mas também no tempo. Deus não conhece apenas os futuros, vive-os.
Mas está além quer do provável, (ou até muito ortodoxo) é apenas uma hipótese (não passa de uma conjectura), quer do âmbito deste trabalho.
São estas as duas traves-mestras que nos nortearam na análise da História do Futuro.
A utopia e a exegese da Revelação, com particular incidência sobre a vertente de pensamento milenarista.
As remissões neste trabalho são sempre em direcção à edição da obra de Vieira já citada, e à Bíblia, cuja edição utilizada, é a recente edição dos Monges Capuchinhos, que é uma edição com alguma projecção junto dos estudiosos do Livro.
A esfericidade do tempo
Para Vieira, o homem é um ser de esperança. Queremos com isto dizer que na sua natureza, a aspiração ao conhecimento, e em especial, ao conhecimento do futuro está profundamente constituída. E como queremos a antecipação do que é agradável, quer seja em conhecimento, quer seja em efectivação na acção, o conhecimento do futuro, o seu desejo, é esperançoso.
A diferença entre divindade, e homem, está na posse dos conhecimentos futuros, ou melhor, nos conhecimentos do futuro. Se Adão no paraíso se apoderou do conhecimento do Bem e do Mal, Deus não quis que tivesse acesso ao fruto da árvore da vida e se tornasse imortal. A subjugação ao tempo (mortalidade), às dores do parto, a ao árduo trabalho para retirar sustento da terra, são metaforicamente, sujeições ao tempo, na medida em que as dores do parto são as dores da geração e do carregar essa geração durante nove meses, e na periferia do jardim do Éden o ser humano sofre as consequências da corrupção, ou seja, envelhece. O árduo trabalho para retirar sustento da terra não se limita ao esforço físico, que acelera a decrepitude, mas aplica-se também aos esforços humanos sujeitos à mudança das estações (tempo circular), e entre outras coisas, ao facto de que para evoluir na sua ciência do Bem e do Mal, o ser humano tem de actuar civilizacionalmente, isto é, os esforços e avanços não se limitam ao esforço de uma vida particular, tem de ser passados e desenvolvidos de geração em geração.
A noção de castigo, devido à transgressão, em que o tempo é factor determinante aparece na frase em que Deus deixa bem claro:
«E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, todos os dias da tua vida.» Génesis 3:17
Não é só o facto de não haver tréguas para a dificuldade, que está aqui patente.
É o facto de o Senhor mencionar, que é para todos os dias da vida...que está reservado o sacrifício. Os castigos gregos de Prometeu, Tântalo, Sísifo, etc., não deixam de ter remissão aqui, sendo sacrifícios ao tempo...à eternidade do suplício. Penoso trabalho para ser «desfrutado» durante toda a vida. Faz parte da vida ser acompanhada de martírio.
A esperança reside no futuro, nos tempos melhores, do porvir.
Mas a esperança num futuro melhor, é legitimada pelo facto de Deus condenar o homem ao sofrimento? É que esta condenação é um castigo, não uma maldição. Há esperança num futuro melhor, e é necessário que assim seja, pois não se pode conceber uma vivência decente sem esperança ou com receio do futuro. É um castigo muito irónico, pois o homem desobediente é lançado por sua conta e medida para fora da terra idílica, e como queria ser igual a Deus vai ter de se servir das suas obras, e do seu livre arbítrio para se governar a si e aos outros. Vai depender daquilo que não era suposto ter.
Mas por falta de explicação melhor, talvez a memória intemporal e original de uma ligação ancestral com o Criador, seja o élan da esperança. Porque um dia estivemos ligados ao Criador, temos ainda resquícios dessa felicidade na memória, e ansiamos a concretização futura de algo que como que ficou quebrado... a re-ligação.
Mais uma vez, tudo isto não teria sentido se a Bíblia, entendida como fruto de inspiração divina, não possuísse um sentido escatológico. Esse sentido revela-se (mas não só) com a máxima força, no Livro da Revelação. Curiosamente um livro que versa sobre o futuro na senda de uma profecia do passado, a primeira profecia.
O último livro da Bíblia chama-se «A-po-ká-ly-psis», que é uma palavra grega, que modificada para a forma corrente de Apocalipse, tem na sua etimologia o significado de «exposição», «exibição». Resolveu-se denominar esse livro de Revelação.
A Revelação versa sobre o «dramático apogeu do grandioso propósito de Jeová» que é o Deus das Escrituras.
O livro da Revelação não é apenas o culminar, o desfecho de uma história que principiou no Génesis há cerca de 6000 anos. É também o culminar de um acto divino que é tão só o de santificar o Seu nome perante toda a criação (Ezequiel 25:17;38:23).
O Génesis relata a Criação, inclusive o zénite da criação que é o ser humano. Relata também a primeira profecia, proferida pelo próprio Criador no paraíso. O episódio encerra em si um significado muito profundo, e são intervenientes uma serpente acabada de ser usada para enganar a primeira mulher, Eva, que por sua vez persuadiria o seu marido Adão para também violar a lei do Criador. No decorrer do julgamento do casal pecador, Deus profere, como já foi notado, a primeira profecia, que aqui transcrevemos:
«Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.» Génesis 3:15
Esta profecia estabelece o tema para toda a Bíblia, especialmente para o livro da Revelação.
Que propósito é este, o do Deus dos hebreus?
Que significa santificar o seu nome perante toda a Criação?
A Revelação explica detalhadamente o término triunfante da questão. Ajuda também a entender as questões envolvidas e a obter uma visão geral dos propósitos divinos.
O primeiro livro fala da Criação, o último revela o Criador na sua intenção.
O que significa a primeira profecia, proferida pelo Inspirador dos profetas?
Estas questões serão analisadas um pouco mais à frente, no decorrer desta exposição.
Deus deixa-nos às escuras, sem a mínima ideia daquilo que pretende de nós, do que é suposto que façamos e sejamos?
Se dermos um pouco largas à boa vontade da nossa interpretação, poderemos encontrar a epopeia na revelação divina nos primeiros versos do Pentateuco. Deus afirma, acontece, no momento em que formava Adão, já sabia o que ia acontecer. Quando trouxe à existência o seu «braço direito», o segundo na hierarquia celeste, Deus já sabia o que iria suceder. No entanto, não só a história se concretizou, como Deus, dela deu testemunho ao homem.
Á primeira vista, seria uma maldade inimaginável saber de todos os crimes cometidos contra o ser humano, pelo ser humano, contra o Espírito Santo, pelo ser humano. Mas faz tudo parte de um propósito divino, o de santificação do nome de Deus perante toda a Sua obra. E é também um imenso teste de personalidade.
Tudo já aconteceu na mente divina, tudo já está presente e como que decidido nos desígnios de Deus. Deus diz como vai ser, e é assim que vai acontecer... Mas não existe um destino, o que existe é uma omnisciência intemporal, e que é revelada ao homem através da profecia.
Existe uma conjugação, entre o desejo de conhecer os futuros por parte do homem, tal como é propósito divino revelar os seus intentos. E se já no paraíso o ser humano era pródigo em desejos pelo proibido, e sua virtude consistia em vencer a sua tendência como prova de respeito, também na profecia devido ao seu carácter enigmático, o homem tem de se esforçar para penetrar nela, dependendo o seu sucesso não só do seu ( e do de outros) engenho, como do tempo certo, em que Deus deixa fazer-se luz sobre a profecia. Parafraseando Pessoa, Deus quer, o Homem esforça-se por entender, a profecia é deslindada. A revelação da profecia só ocorre quando o que profetiza se torna efectivo, pelo que se for deslindada antes da ocorrência, tanto mais o valor profético é acentuado.
«Como é inclinação natural do homem (e muito mais depois da natureza corrupta) apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo (...)
Tão mal sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus (...) antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.»i
Mas, tudo o que é desejado se vê rodeado por poder, e abusos de poder. Se todos queremos saber com que linhas se cose o futuro, quer por temor, ou a favor do sonho e antecipação do porvir, os detentores desse saber ganham poder e ascendente sobre nós.
E como há sempre abusadores e impostores ( quer saibam que o são, quer não o saibam), é necessário um critério para poder avaliar o carácter profético da profecia, que só terá uso antes do discernimento do seu valor de verdade, o que torna muito difícil avaliar uma profecia, uma vez que só quando ela se concretizar, saberemos se era realmente profecia ou não, mas aí já pouco uso terá para nós.
Quais os parâmetros de avaliação profética?
O conhecimento virá (utilizando as expressões de Vieira):
1) através do lume natural do discurso (razão, observação do tempo, costumes, épocas, etc., e estado do mundo);
2) através do lume sobrenatural (Deus revela, dá a profecia).
Ou seja, podemos clarificar o valor profético e a autoridade da profecia através da inferência da especulação natural própria, e através da revelação sobrenatural e divina.
Não queremos aqui induzir a um combinado culinário, em que tendo nós os ingredientes, facilmente cozinhamos um caldo adocicado, isto é, mesmo verificando a solidez dos parâmetros já citados, tudo depende do tempo certo de revelação, como por exemplo o livro da Revelação, em que é certo, quase indubitável ser de inspiração divina, e por isso canónico, e cujo significado oculto tem vindo a ser estudado e debatido ao longo das eras, e ao longo das eras, se tem aplicado o seu tom profético final, mas até hoje, com consequente não verificação efectiva.
Porquê? Porque ainda não chegou o tempo próprio.
As profecias dos profetas são archotes que iluminam trechos não de espaço, mas de tempo. O resto pode ser inferido pela razão, pelo lume da razão, como afirma Vieira.
Os livros dos profetas são o princípio e o fim, mas o caminho intermédio, de exegese e estudo ruminoso, tem de ser percorrido por nós.
A natural obscuridade das profecias pode ser minimizada com a ajuda dos apóstolos, e dos padres doutores da igreja.
Parafraseando o jesuíta, no labirinto dos futuros, as profecias e os doutores são as tochas que alumiam, o entendimento e o discurso, são o fio de Ariadne.
Grande parte da História do Futuro debruça-se na clarificação do espírito profético. Sendo o livro Anteprimeiro o alicerce de todo o conjunto, pois examina e explana os critérios e questões relativos ao verdadeiro conhecimento da verdadeira profecia.
Não está no âmbito deste trabalho, fazer essa análise detalhada, pelo que passamos ao ponto seguinte.
Existem duas instâncias a clarificar como base de inferência, as profecias canónicas presentes na Bíblia e não só, legitimadas por concílio ou tradição através do consenso entre os padres e coerentes com as Escrituras; e as profecias não canónicas mas no caso de Vieira, dignas de serem tidas em conta, prenhes do mesmo espírito profético, proveniente de Deus. Se as profecias canónicas recebem a sua autoridade de Deus, as outras recebem autoridade pelos seus efeitos...
Às profecias:
1) canónicas
2) inferências rigorosamente extraídas das profecias canónicas e Escrituras;
3) não canónicas ( mas de certeza moral e salvaguardadas pela verificação dos efeitos);
4) e as que ficam dentro da probabilidade opinativa – não provadas, investigadas, etc.
corresponde um valor de:
1) verdadeira com certeza de fé;
2) verdadeira com certeza teológica;
3) verdadeira com certeza moral;
4) verdadeira com certeza provável.
Estes são os quatros pilares da obra. Vamo-nos cingir às profecias canónicas.
É tese deste trabalho que a declaração divina proveniente da divina omnividência «temporal», é para o ser humano profecia, e que se é proferida por Deus, então vai acontecer, dependendo a visão humana da mesma apenas da justa e correcta interpretação, que por sua vez, sofre o mais importante concurso da vontade divina.
É tese deste trabalho dizíamos, que se o futuro está descrito, delineado a nível geral, por Deus, então a profecia é um elemento dissolvente do tempo, como síntese dos três momentos temporais, escrita no passado, interpretada no presente sobre algo do futuro.
O tempo para Vieira tem tal como o mundo, dois hemisférios:
1)superior e visível e que é o passado;
2)outro inferior e invisível que é o futuro.
No meio dos dois ficam os horizontes do tempo que são os instantes do presente que vamos vivendo. Horizontes onde o passado termina, e o futuro vai começando.
O presente é o instante, não pertence a uma metade da esfera, nem à outra. A perpetuidade do tempo reside num passado que sempre se acaba, é passado, e um futuro que sempre começa. Este limiar entre um eterno começar e um eterno acabar é o presente. Mas o presente só tem razão de ser como algo abstracto, pois assim que pensamos nele, já passou e já outro veio e passou também.
Os habitadores do futuro, são os antípodas do passado, e a novidade daquilo que irá acontecer no futuro, vem não só do facto de ainda não ter acontecido, como do facto de nunca haver acontecido antes. Ou seja, a novidade, sem ser considerada como instante abstracto, estabelece a relação entre o passado, o futuro e o profético. O futuro encerra em si um valor profundo sobre o presente, conhecê-lo, se for pernicioso permite precaução, se for favorável permite antever sonhando, mas de qualquer modo, o conhecimento do futuro aplica sempre um referencial prático ao instante, ao presente.
O símbolo do Millenium, é uma serpente que morde a sua própria cauda.
Referimos a circularidade do tempo em Vieira, não só porque é uma ponte para a introdução ao pensamento milenarista, como nos permite clarificar que o desfecho cósmico daquilo que foi predito, é um retorno a si da profecia divina, tal como o é o preciso ponto em que a serpente morde a cauda. Não nos referimos aqui a um tipo de eterno retorno, mas a uma circularidade temporal que a profecia reflecte e que Vieira tão bem mostra e explora. O cumprimento da profecia relativiza o tempo até torná-lo secundário, podendo nós caminhar radicalmente para uma noção na qual ele passa a ser supérfluo. A autoridade e milagre da mesma provém do salto que dá no tempo, coisa que só a divindade pode fazer, ela é uma incursão do divino no profano. É uma manifestação, cujo valor principal é esse mesmo, ser manifestação do divino, mais do que ser uma excepção à regra. Se todos tivéssemos a capacidade de prever o futuro, não existiria uma noção de profecia. Não só a profecia reflecte um esbatimento do tempo, que a ela não resiste, como no caso do Deus judaico-cristão, é uma intervenção de carácter teleológico, pois é não só a comunicação do que vai acontecer, como é peça de um puzzle, de um propósito teleológico, intencionado e predito, a santificação do nome do Criador, perante toda a Criação.
Salta do tempo a profecia, porque foi predita, e porque foi predita, prevista antes da existência do tempo, na «mente» do Criador. E é na mente do Criador, que o tempo se torna circular, pois torna-se essencial poder provar ao Criador que nos esforçamos, e é condição necessária de efectivação do livre arbítrio.
Se Deus tivesse evitado a concepção de Hitler, não lhe teria dado a oportunidade de escolher entre cometer os crimes que cometeu, e proceder de outra forma.
A revelação é a obra que mostra a imensidão infinita da sabedoria eterna, intemporal, de Deus, e a sua acção, ao mesmo tempo que mostrando limites ao homem lhe dá uma lição de humildade.
O problema na base da profecia, e do crédito da mesma, não é só o da sua veracidade, é o problema central bíblico, é o problema da autoria. O problema da autoria tem exemplos espalhados por toda a obra bíblica, quer seja o desejo de poder e adulação pelo primeiro anjo caído, quer seja por Moisés ter afirmado a sua autoria quando fez a água jorrar da rocha, quer tenha sido o bezerro de ouro, a idolatria, que revela ingratidão e vai contra o propósito divino de santificar o Seu nome.
A relação de Deus com a Sua Criação é muito simples, Deus e a Sua vontade revelam-se na Sua Criação.
As profecias são próprias do tempo em que a igreja não as consegue (ainda) interpretar, pois ordenada e sucessivamente, o tempo vai dando sinais, sinais do que dizem as profecias, e as profecias são esses sinais (quando verdadeiras).
O livro da Revelação, como é descrito por Vieira, é um livro fechado não a sete chaves, mas a sete selos, que se vão rompendo gradualmente revelando a Revelação. Estamos no reino do simbólico, sete é o número da perfeição.
Este mundo, onde essas profecias se revelam, é um teatro, a História é a comédia de Deus, e se uma peça teatral tem partes, a História tem idades. A aparente maravilha não entendida da História é o suspense com que Deus vai prendendo e chamando a nossa atenção.
A profecia é o sinal da vontade de Deus, a efectivação da profecia é o retorno do mundo, do tempo à palavra do Deus que a proferiu. Não só o acontecimento ocorre antes de ocorrer, na mente todo-poderosa do Todo-Poderoso, como quando realmente se efectiva o acontecimento descrito na profecia o tempo é diluído pois a palavra passada torna-se ocasião presente.
A boca da serpente (como símbolo do Millenium, percebe-se a intenção da escolha do animal, mas para a simbologia Cristã, a escolha é um pouco infeliz) volta a morder a sua cauda. Diluir a profecia é diluir o tempo.
Quando digo, «– Amanhã vai chover.», quando chove, o que eu previ é a realização das palavras passadas, a palavra torna-se acção, e não só o tempo se esbate, como a profecia deixa de o ser para ser «realidade», como há uma transição do reino das palavras para o reino das coisas.
Se com o avançar do tempo avançamos para o desfecho do que Deus disse, cada vez mais estaremos próximos de decifrar o significado profético (não esquecendo que Vieira explora a fé através da profecia) , pois hoje:
1)descobrimos mais porque olhamos de mais alto
2)distinguimos melhor porque vemos de mais perto
3)trabalhamos menos porque achamos o «caminho livre», mais desimpedido
A)o caminho está mais desimpedido porque os nossos antepassados cavaram e varreram aquilo que nos podia obstruir o empenho e o caminho
B)vemos de mais perto porque estamos mais chegados ao futuro
C)olhamos de mais alto porque somos anões nas costas de gigantes
O milenarismo foi a doutrina partilhada por diversos escritores dos primeiros séculos após o nascimento de Cristo (e também de certas seitas cristãs modernas), segundo o qual Cristo reaparecerá na Terra para reinar durante mil anos.
O milenarismo tem uma raiz hebraica e é fundamentado nos profetas bíblicos e foi assimilado pela religião cristã, e a partir do monge calabrês Joaquim de Fiore, a tónica foi-se acentuando no livro do Apocalipse.
Durante os vários séculos que se seguiram, foi-se compondo um corpo doutrinário que era a tradução de uma reflexão sobre o sentido da «Grande História», da história universal, nomeadamente no sentido teleológico. Óbvio é que o fim dos tempos foi, e é uma preocupação vital para este pensamento, pois Deus tem um fim, finalidade para nós, e porque a história bíblica pouco se importa com o tempo, ele só interessa como acessório do fito divino, e porque a escatologia das Escrituras é dual, existe o Bem e o Mal, e existe esse tal desenrolar das coisas de Deus no tempo, e no fim haverá um julgamento, que só é fim para o que não é de acordo com a sua natureza, a jusante de tudo isso... tudo decorrerá de acordo com a vontade do Criador...para sempre, o que é eterno, está fora do tempo, o tempo é um acidente necessário nas coisas dos homens e de Deus.
A Revelação
A revelação foi feita a João, pescador iletrado, cuja tradição identifica com o apóstolo João, mas cujas provas não são suficientes sequer para tal afirmação, mas são suficientes para dizer que João era irmão de Tiago, e filho de Zebedeu, um dos doze apóstolos.
O Apocalipse é um livro carregado de imagens grandiosas e simbólicas acerca do fim dos tempos. Encaramos o fim dos tempos, não só como no sentido de um fim deste sistema de coisas, como encaramos o fim dos tempos numa dupla acepção: como consequência «política» decorrente do fim deste sistema de coisas que se resolve num novo governo por parte de Deus, e como consequência desta consequência, isto é, como consequência da instauração de um governo eterno, o tempo deixa de ter sentido, dissolve-se / acaba-se.
Acreditamos, tal como Vieira e Joaquim de Fiore, que na revelação a João não se encontram somente meras mensagens de fatalidades ou cataclismos, ou visões sobre o fim do mundo, mas também mensagens de revelação dos propósitos divinos.
«É melhor o fim de uma coisa do que o seu princípio (...)» Eclesiastes 7:8
Toda a Bíblia comparada com a Revelação, é um mero descrever, onde sem dúvida encontramos um sentido, mas sem a força do último livro, onde Deus revela toda a finalidade da Sua Obra.
A finalidade é :«Desta maneira, manifestarei a minha grandeza e a minha santidade, e far-me-ei conhecer aos olhos de muitas nações. Então, reconhecerão que eu sou o Senhor.(Javé)» Ezequiel 38:23
Mas deixemos a maior parte do corpo do último livro da Bíblia, para nos focarmos na última parte do último livro.
«Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.» Génesis 3:15
Esta foi a primeira profecia bíblica.
O reinado milenar de Jesus Cristo começará depois da clausura do anjo caído e dos seus seguidores, no abismo onde ficarão retidos durante mil anos, durante os quais deixarão de apoquentar os seres humanos. É Cristo que possui a chave do abismo e que vai ao encontro dos futuros prisioneiros, coloca-os no abismo, fecha o abismo para que eles, os anjos caídos não desencaminhassem as nações da Terra. Mais uma vez aqui, Deus assegura sempre a possibilidade de escolha, de livre arbítrio até às últimas consequências, na medida em que o reinado milenar livre do mal, permitirá após a derradeira soltura deste, a decisão aos humanos de qual o sistema de governo que preferem. Se o de Deus, se o de outro.( ver Revelação 20:1-3)
O pecado original não foi a desobediência de Adão, foi sim o orgulho daquele que até então se posicionara muito perto do Criador. Esse orgulho desmedido resultou no desencaminhamento de Adão, e a partir daí o inimigo de Deus tudo tem feito para conseguir o maior número de fiéis para a sua causa. O homem, na Bíblia, sendo o ponto alto da Criação, é uma mera marioneta nas mãos daquele que apenas persiste no seu orgulho.
A guerra movida aos elementos humanos imbuídos de espírito missionário (que são a mulher-organização – simbolismo que significa tradicionalmente que a figura de Eva simboliza a figura da igreja(qual, não sabemos) que é esposa de Cristo- isto é, a falsa religião que recebe a sua autoridade do anjo pecador, persegue a verdadeira religião que é a mulher, a igreja instituição que ama a Deus.
O descendente da mulher é Cristo, que foi mordido no calcanhar quando foi crucificado pelos poderes corruptos terrenos, e foi mordido no calcanhar, porque foi um «ferimento» quase sem importância, ao passo que pisará, esmagará a cabeça da serpente. Cristo acabará com o autor do pecado original, onde reside o atrito bíblico sobre a questão da autoria, e da autoridade. (Ver Revelação capítulos 18 e 19)
O descendente humano da serpente é a falsa religião, a política e a alta economia.
Antes de prosseguir, é necessário advertir que a nossa interpretação não está vinculada a nenhuma confissão, a sua referência aplica-se apenas ao texto bíblico.
Inimizade entre a serpente e a Igreja(mulher), e entre os descendentes de ambos.
O descendente da mulher é Cristo e os 144.000 seguidores ungidos, onde Cristo triunfará esmagando a cabeça da serpente.
Enclausurados os caídos, pode o reino milenar começar. Até ao fim deste toda a Terra tenderá a parecer-se com o jardim Éden. São literalmente mil anos, esta designação aparece três vezes na Revelação 20:5-7. O dia do julgamento, dura mil anos, pois um dia para Deus, são mil anos para os homens. Nestes mil anos serão ressuscitados todos os seres humanos que já nasceram e morreram na Terra, menos aqueles que cometeram pecados contra o Espírito Santo. Após esses mil anos os prisioneiros do abismo serão soltos para o teste final de personalidade do homem, fomentando ou tentando fomentar a guerra entre os humanos que durante algum tempo conseguiram a harmonia, e tentarão derrubar Nova Jerusalém. Mas esta tentativa será aniquilada e com ela os decaídos desobedientes. (Ver Revelação 20:9b-10a)
Os que passarem no teste de fé, passarão a ser habitados com o Espírito de Deus, tal como Adão o foi, e Deus voltará a viver entre os homens.
«Eu sou o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim;(...)» (Ver Revelação 21:5,6a)
A utilidade da HF não é só satisfazer a curiosidade sobre o Futuro. As coisas boas que estão para vir são engodo para a concretização do propósito divino.
«Por isso, quer a Providência Divina que as sentenças estejam escritas antes da execução, e que haja quem as interprete antes do sucesso.»ii
Vieira foi missionário, talvez seja um dos 144.000 ungidos. Quem sabe?
Tentámos aqui fazer uma sinopse arqueológica entre algumas noções que se destacaram na leitura da obra inacabada do jesuíta. Poderíamos ter seguido o caminho comum, levantando também a questão do quinto império e do lugar que Vieira acreditava ser o dos portugueses na história mundial e escatológica. A tarefa da pregação, tal como está referida no Livro, desempenhou um papel vital na difusão religiosa por todo mundo. É um fenómeno espiritual que não pode ser reduzido a uma curiosidade de uma confissão. E esse grandioso fenómeno, foi participado pelos portugueses. Somos um povo como qualquer outro, o que nos levou para os Descobrimentos não foi apenas a falta de prata na Europa e o engodo do ouro de Ceuta, e as especiarias. O homem não se move só por talentos de prata, é certo que levámos os vícios, mas também as virtudes, da nossa igreja e que também causariam dissabores ao próprio Vieira, a fé também moveu montanhas de homens, e homens montanhas de fé como por exemplo Vieira. Impregnados com o espírito missionário temos milhares a sair deste pequeno berço, para talvez morrer no imenso sarcófago do mundo, missionários que talvez como Vieira, aprendiam a língua dos nativos, iam de facto até eles.
«E este grande Eufrates é aquele grande mar, pelo qual os Portugueses (maior façanha e ventura que a do outro Ciro) fizeram a passagem a pé enxuto nas suas grandes naus da Índia, para levarem nelas a Fé ao Oriente e trazerem tantos reis orientais à obediência e sujeição da Igreja.»iii
Na página 235 da edição por nós utilizada, explana-se toda a convicção missionária de Vieira. O diabólico da idolatria é combatido pelos missionários, levando não só o Nome de Deus, mas também e com Ele, a salvação.
Estes homens foram salvar outros. Poderia ser assim o epitáfio dos Descobrimentos.
Com ele claramente se antevê o pejo que Vieira tinha da escravatura. A salvação não está num convés de um navio negreiro, nem num cabresto no pescoço dos nativos.
Jesus expulsou os vendilhões do templo, Vieira se pudesse (vontade não lhe devia faltar) expulsaria o comércio de estar misturado com a evangelização.
As teses que procurámos expor passaram pela exposição do carácter de compromisso além utópico desta obra de Vieira. De compromisso por causa do modo como o tempo é exposto, e como é feito o referente à actualidade, diferente do referente da utopia.
A utopia e a exegese do Apocalipse foi por nós justificada na intenção de mostrar como o espaço e o tempo são diluídos, sendo essa diluição a diferença (além do referente «não terreno» do livro do Padre António Vieira) entre utopia e a HF.
A profecia é o elemento que opera uma fuga fugidia, foge do tempo e espaço objectivo para a ele retornar.
Um dos motivos da grande originalidade de Vieira, está na forma literária utilizada, que surge fazendo a fusão das partes do tempo criando uma utopia sem referente. E o paradoxo habita esta noção se considerarmos que com a dissolução do tempo deixa de ser utopia, sendo uma exposição no essencial utópica.
A esfericidade do tempo, e a profecia como dissolvente espacial, foram as pedras de toque para a compreensão do futuro delineado por Deus, e a cujas profecias, Vieira tantas vezes recorre, para explicar os seus pontos de vista, e para deixar a reafirmação da mensagem da Bíblia: o desfecho trará tempos melhores
Conclusão
Tentando fugir do lugar comum que é enaltecer elementos da alma histórica nacional, por reacção a outras modas que permeiam o espírito presente, tentámos expor algumas considerações sobre uma obra capital do pensamento de um autor que se afigura como dos mais originais a utilizar a língua de Camões.
Grande exegeta das Escrituras Sagradas, Vieira, a nosso ver, mistura com toque sóbrio de génio a utopia, ou a leve brisa utópica que medeia entre o fim do Renascimento e a alvorada da época Moderna, com a revelação e fenómeno da fé...ao mesmo tempo que se transforma em testemunha da revolução humana dos Descobrimentos.
Em épocas de grandes mudanças germinam as grandes obras. Esta afirmação não é um encómio forçado, mas tão só a constatação do valor de um autor mais desprezado por pseudo ateísmo ignorante que por pouca importância ou originalidade das suas ideias, teve a sorte de nascer no grande Portugal de Quinhentos, azar de ter convicções antropológicas e teológicas, que mesmo depois de morto ainda parecem persegui-lo.
Parece existir uma estreita ligação entre os homens e as voltas violentas da história, os homens fazem a história e ela a eles.
São Tomás Morus no seu clássico Utopia, alude às viagens de Platão, não a Siracusa, mas nos horizontes do espírito. Esta alusão sai da boca de um personagem que é um marinheiro português.
Esta pequena comparação não é uma mera curiosidade, é que na História do Futuro o u-topos e o u-cronos não acontecem. E não acontecem devido a uma diferença muito importante e que é a posição fulcral da revelação no plano da obra.
Se o denominador comum da República de Platão, ou da Utopia de Morus parece ser um télos, isto é, uma construção que se quer paradigmática ou crítica, o desfolhar da HF remete-nos não para criações fictícias, pois o carácter profético tem a sua razão de ser na verdade e certeza dos acontecimentos do porvir, mas para uma prova, milagre que é a revelação, a «mão» de Deus nas coisas dos homens que não desloca nem projecta a realidade, nem metaforiza essa mesma realidade na sua síntese espácio-temporal.
Como podemos então conceder a Vieira, laivos inspiradores de utopismo, isto é, se entender-mos a utopia como um sistema de encarceramento do tempo e do espaço, remetendo para um lugar imaginário, ou melhor, ficcionado, em menor ou maior grau?
A interpretação bíblica que serve de pano de fundo ao conteúdo é a resposta.
Podemos fazer a distinção entre discurso profético ou utópico, mas as únicas diferenças entre ambos são a necessidade e a possibilidade, isto é, enquanto no discurso profético é necessário que exista um acordo entre o profetizado (antecipado) e o que ulteriormente acontece. A raiz do discurso utópico é a da possibilidade, pois ao criar um «reflexo» existe sempre a possibilidade ou desejo de concretização, ou a possibilidade de resolução de problemas, caso se opte,, caso se olhe...o eterno «se».
O autor viaja não na razão, mas na fé.
Neste livro, Vieira assume o tratamento do tema do iminente.
Iminência de uma situação, de uma realidade.
O carácter de necessidade da efectivação dos acontecimentos futuros, coloca, a nosso ver, o autor, o relator, como que numa situação intemporal, porque nos três estados temporais ao mesmo tempo, Escrituras(passado), Bandarra e acontecimentos presentes(presente), e descrição de acontecimentos futuros no futuro.
Ao invés de referirmos aqui uma ucronia, referimos uma pancronia que dissolve o tempo (como sucessão contínua de instantes) utilizando como esteira o horizonte do pensamento.
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